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Dia 3 de julgamento BES. A “sensação” de Ricardo Salgado ser o Dono Disto Tudo

Dia 3 de julgamento BES. A “sensação” de Ricardo Salgado ser o Dono Disto Tudo

Ao terceiro dia, os Ricciardi pai e filho contam-nos rotinas de “assinar de cruz” e “trabalhos de maquilhagem” nas contas, um “assobiar para o lado” do governador do Banco de Portugal e um agradecimento por 20 milhões ao Sporting ao líder do BES Angola - até saber que o dinheiro vinha da família Espírito Santo.

“Parece que hoje foi o dia das sensações.” À saída da sala de julgamento do caso BES para o elevador do terceiro piso do edifício A do Campus da Justiça, dois advogados de arguidos resumem aquele que foi o terceiro dia.

Pai e filho Ricciardi, tio e primo de Ricardo Salgado, nunca foram suspeitos ou arguidos no caso e foram ouvidos em tribunal - um em gravação e outro presencialmente - sobre a “convicção” que tinham de que o ex-presidente do BES foi o “único que sabia de tudo” o que levou à queda do Grupo Espírito Santo (GES) e das “sensações” que tiveram antes da resolução do banco.

O testemunho de António Luís Ricciardi, feito em outubro de 2015 ao procurador José Ranito, mostra o antigo homem forte da família Espírito Santo com relativa saúde para quem na altura tinha 96 anos - faleceu em janeiro de 2022, com 102 anos. Lúcido e sem faltas de memória - à parte de algumas datas -, o chairman do BES até 2008 falou durante hora e meia e expôs quando tomou conhecimento do buraco de milhares de milhões no banco.

Foi em novembro de 2013 - nove meses antes da queda do BES - que terá perdido “toda a confiança em Ricardo Salgado”. Isto porque, segundo Ricciardi, o ex-presidente era mesmo “o único que sabia de tudo”. Pelo menos era essa a sua sensação. Questionado pelo procurador sobre se tinha base para sustentar o que dizia, António Luís respondeu apenas que “era a sua convicção”, de que Salgado “sabia de tudo”.

“É evidente que ele não fez esta gestão sozinho. Tinha um grupo de pessoas que trabalhavam com ele. Essas pessoas sabiam de umas coisas, não sabiam de outras. Ele [Ricardo Salgado] sabia de tudo”, disse Ricciardi pai, apontando nomes como Isabel Almeida (também arguida) e Ana Rita Barosa (ex-secretária de Estado do Governo de Passos Coelho e ex-diretora no BES, mas não arguida no caso). De fora ficaram nomes de outros arguidos, como Pedro Costa ou Cláudia Faria.

Quem ficou de fora do fogo cruzado foi o resto da família Espírito Santo. Manuel Fernando, primo em terceiro grau de António Luís Ricciardi - e primo direito e muito amigo de Ricardo Salgado -, era quem também assinava de cruz nos documentos do GES - “se o nome dele estava lá, eu assinava”, disse, sem na altura saber que eram fabricadas assinaturas. “[O Manuel Fernando] não tomava decisão nenhuma ou não fazia nada em que o doutor Ricardo não estivesse de acordo.”

Para o comandante - foi primeiro-tenente da Marinha e especialista em aviação durante a Segunda Guerra Mundial -, também José Manuel Espírito Santo fica de fora da distribuição de culpas do “trabalho de maquilhagem” das contas do BES que começou seis anos antes da queda do banco: “Duvido que o José Manuel tivesse noção da importância que existia na falsificação das contas. Não estava com certeza consciente”, acrescentou.

Um “assobiar para o lado”, rodízios e o BESA em “roda livre”

José Maria Ricciardi chegou ao Campus de Justiça visivelmente mais magro em relação à última vez que tinha sido visto em público, mas com olhar sagaz. Avisou a juíza à partida de que a sua audição não era a melhor à conta de um tratamento que está a realizar, mas ouviu em alto e bom som a pergunta seguinte, se era amigo ou inimigo de Ricardo Salgado. “Não sou nem uma coisa nem outra”, respondeu, referindo que não conhecia a maioria dos arguidos.

Depois de explicar os vários cargos que acumulou nas holdings e sociedades do Grupo Espírito Santo, o Ministério Público mostrou a ata de uma reunião do Conselho Superior em que Ricciardi se terá apercebido pela primeira vez de que as contas estavam “falsificadas”, em dezembro de 2013 - pouco mais de sete meses antes da queda do BES.

No momento, comunicou para a gravação da reunião ouvir que não tinha qualquer conhecimento daquilo e pediu uma auditoria às contas para “apurar responsabilidades”.

Mas as suspeitas já existiam dois meses antes. Numa reunião com o então governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, Ricciardi apresentou um documento assinado por seis dos nove membros do Conselho Superior do GES a pedir a saída de Salgado, comunicando-lhe que tinha a sensação de que havia um “banco dentro do banco”.

Sobre sensações e pensamentos de demissão, Carlos Costa “assobiou para o lado”, disse-lhe para “estar quieto” e ainda o repreendeu: afinal, uma guerra entre primos só servia para “perturbar o setor financeiro”. Enquanto não se sabia da falsificação de contas, diz Ricciardi, “o doutor Salgado fazia tudo o que lhe apetecia e ainda lhe sobrava tempo”.

Já em dezembro, e na altura em que descobre o buraco financeiro em que o BES estava metido, volta a alertar o governador através de uma carta. Na missiva, avisa Carlos Costa de que Salgado está a “centralizar o poder” e manifesta “discordância sobre a forma como tem sido exercida a liderança executiva”.

Entre documentos e documentos, o técnico responsável pela visualização dos vários anexos que foram mostrados pelo Ministério Público foi o mais solicitado da sala de tribunal, com a frase: “não saia, senhor Miguel” a ser dita a mais do que uma voz, por mais do que uma vez.

Seguiram-se provas da centralização de poderes de Salgado, com reuniões do GES onde o “Dono Disto Tudo” sublinhou em fevereiro de 2014 - seis meses antes da queda do banco - a importância dos cinco ramos da família Espírito Santo contribuírem para o aumento de capital da holding que estava no topo da cadeia alimentar, a Espírito Santo Control, para mostrar solidez ao Banco de Portugal.

“Só mais tarde percebi que os aumentos de capital do grupo estavam a ser financiados pelo aumento da dívida da ESI”, explicou Ricciardi, que juntou um raspanete ao progenitor, António Luís: “O meu pai contribuiu e perdeu tudo. Eu bem lhe disse para não contribuir.”

Até esse momento, Salgado havia criado uma narrativa de que o buraco do BES era explicado por erros de contabilidade atribuídos a Francisco Machado da Cruz - “colocado entre a espada e a parede - e que, segundo Ricciardi, o Banco de Portugal e o Ministério Público teriam acreditado nessa teoria “durante algum tempo.”

Tudo mudou em maio de 2014, através de uma entrevista do contabilista com um advogado suíço no Luxemburgo que Ricciardi terá recebido através de fontes secretas, na qual Machado da Cruz explicava o “trabalho de maquilhagem” das contas e que foi exposta ao Banco de Portugal.

A isto soma-se o “rodízio de obrigações” em que a corretagem emitida pelo BES “era tão grande” que representava um prejuízo considerável nos cálculos de auditores, tendo sido uma das razões da resolução do BES.

E há ainda o BES Angola, que Ricciardi esclarece nunca ter acompanhado, mas que indica que tinha um “estatuto especial” por não prestar informações ao BES devido às regras do regulador angolano, que impediam que “carteiras de clientes fossem do conhecimento das autoridades ou dos reguladores ou dos próprios administradores”.

Assim, segundo o ex-líder do BESI, o presidente Álvaro Sobrinho andava em “roda livre”, usando dinheiro do banco como seu.

E isso traz-nos a um episódio caricato que envolve Sobrinho, o Sporting e Ricciardi, o trineto do visconde de Alvalade. Quando soube de um empréstimo de 20 milhões de euros de Sobrinho ao Sporting, na altura em dificuldades, o administrador do BES fez questão de agradecer ao empresário angolano. Mas a realidade bateu forte mais tarde.

“Na altura, a procuradora disse-me que esse agradecimento era excessivo, porque o dinheiro não seria de Álvaro Sobrinho, mas do banco da minha família”, revelou, referindo-se à transferência de 20 milhões do BES Angola para comprar ações do clube de futebol.

Com a ação, Sobrinho passou a deter 30% do clube, com Ricciardi a acusá-lo de “usar o dinheiro do banco para usos pessoais”.

Ao terceiro dia, acumularam-se as dificuldades técnicas: depois de má qualidade de som ao ouvir Salgado no segundo dia, houve mais queixas ao ar condicionado e documentos de pernas para o ar na sala de audiências, além de barulhos vindos de quem estava em videoconferência. A somar a isto uma pausa para entregar água a Ricciardi - a defesa dos arguidos ainda tentou oferecer, mas o ex-administrador do BES esperou pela bebida do tribunal.

E ao terceiro dia, apareceu o último arguido que faltava identificar: António Soares, representado por Rogério Alves, surgiu desorientado e “contra indicação médica”, segundo o seu advogado, mas seguiu a mesma orientação dos outros 14 arguidos e decidiu não prestar declarações.

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