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Dia 5 de julgamento BES. A relação entre Salgado e Marcelo e os dois delatores do buraco no Banco Espírito Santo

Dia 5 de julgamento BES. A relação entre Salgado e Marcelo e os dois delatores do buraco no Banco Espírito Santo

Pedro Queiroz Pereira (PQP) e Fernando Ulrich foram dois dos primeiros a comunicar ao Banco de Portugal o "buraco" que existia nas contas do Grupo Espírito Santo - um ano antes da sua queda. PQP fê-lo para voltar a tomar controlo do seu grupo, a Semapa. Ulrich estava mais preocupado com o impacto da queda do BES no "seu" BPI.

A segunda semana de julgamento do caso BES/GES contou apenas com um dia de julgamento, mas juntou dois dos nomes fortes que montam a acusação a Ricardo Salgado e aos outros 17 arguidos do processo: Pedro Queiroz Pereira, que contratou uma equipa de 16 advogados para investigar o buraco do Grupo Espírito Santo (GES); e Fernando Ulrich, a primeira pessoa de fora da esfera do Grupo Espírito Santo a lançar o alerta para as contas do GES - um ano antes da sua queda.

Ambos o fizeram em 2013, não com o interesse primário de expor o BES ou alertar os milhares de clientes do banco, mas com o objetivo de proteger os respetivos grupos.

Queiroz Pereira, da Semapa, investigou e denunciou os Espírito Santo para recuperar o que era seu, depois de uma tentativa de golpe de Ricardo Salgado.

Já Fernando Ulrich, presidente do Conselho de Administração do BPI, avisou o ministro das Finanças e o Banco de Portugal, mas como testemunha esta terça-feira mostrou-se mais preocupado com o impacto financeiro da queda do BES no seu banco - e em dar aconselhamento jurídico - do que em dar respostas.

Depois de uma bancada cheia no começo do julgamento, ao quinto dia de tribunal restaram apenas dois resistentes entre os 18 acusados: Amílcar Morais Pires, o nº2 de Salgado, foi consultando um caderno com notas à medida que ouvia os testemunhos; e Francisco Machado, o contabilista do GES, que foi acenando com a cabeça ao longo da sessão.

O “mentiroso compulsivo” Salgado e a “múmia” Ricciardi

Num depoimento prestado menos de sete meses antes de morrer, depois de um ataque cardíaco a bordo do seu iate, em Ibiza, no ano de 2018, Pedro Queiroz Pereira, também conhecido como PQP, começa por fazer uma nota de intenções: “Se há pessoa que está interessada em esclarecer este assunto sou eu”.

Em pouco mais de três horas, conta como recuperou o controlo da sua empresa, depois de uma tentativa de saque de Ricardo Salgado através da própria irmã de Queiroz Pereira, como suspeitou do rombo nas contas dos GES - ”uma vigarice completa” -, avisou o Banco de Portugal do buraco que existia e ainda sobrou tempo para falar das ligações entre o “Dono Disto Tudo” e Marcelo Rebelo de Sousa.

Antes disso, dá um contexto histórico do BES, sugerindo que a “razão por que tudo isto aconteceu” se deve à perda da liderança do “lado mais banqueiro da família”, com o comandante António Luís Ricciardi a tornar-se chairman - algo “conveniente” para que Ricardo Salgado “pudesse fazer tudo o que entendesse”, diz Queiroz Pereira, já que este era “um bocado uma múmia”.

E é nesta altura que o ex-líder da Semapa tece as suas (muitas) considerações sobre Salgado.

"Ricardo Salgado tem características boas e más. Entre as boas: é uma pessoa extraordinariamente trabalhadora. Entre as más, é um ambicioso desmedido, capaz de matar o pai e a mãe, e um mentiroso compulsivo”, foram algumas das frases ditas por Queiroz Pereira, passando a dar exemplos.

“Quer convencer o interlocutor de que 2 e 2 são 5. É capaz de chegar aqui e dizer que esta folha de papel [aponta para uma folha de papel completamente em branco] é preta. E convence-se a si e convence os outros”, explicou o empresário, no depoimento dado como testemunha efetuado em janeiro de 2018.

E, por causa disso, “ninguém se atrevia” a desafiar Salgado dentro do Grupo Espírito Santo. “Nem sequer beliscar.”

O plano de Salgado para controlar a Semapa através das irmãs de "PQP"

Tudo terá começado algures em 2001, quando a irmã Margarida se afastou definitivamente de Pedro, cedeu à vontade de Salgado e começou a vender ao GES as suas posições nas sociedades que controlavam a Semapa. Não diretamente aos Espírito Santo mas a três sociedades offshore: a Gaunlet, a Allord e a Relcove.

Quando Queiroz Pereira questionava o “Dono Disto Tudo” sobre elas, este dizia-lhe que quem estava por detrás “eram noruegueses” e “discretos”. A verdade era bem mais sombria.

Por detrás destas estava o GES, que tinha comprado as posições da irmã de Queiroz Pereira através de ações do próprio grupo, que por sua vez estavam também parqueadas em offshores. Uma pescadinha de rabo na boca, em que o rabo é a participação de 20% na Cimigest e 10% na Sodim que o GES comprou, e a boca são ações do próprio GES com que ficou Margarida Queiroz Pereira.

Foi aí que "PQP" perdeu a confiança nos Espírito Santo e em Ricardo Salgado: “Desde essa altura que não tenho confiança nenhuma. Fingia que não sabia de nada.”

O que me indignava é que eu sabia que aquilo [Grupo Espírito Santo] estava muito mal financeiramente mas iam buscar dinheiro aos clientes para comprar posições nas minhas empresas. Quando começo a perceber que a minha irmã está muito próxima dos Espírito Santo, já tinham comprado [a sua posição].”

Só em junho de 2012, quando o GES mostrou a sua face, é que Queiroz Pereira percebeu que era Salgado por detrás no golpe para tentar controlar a Semapa.

E é esta ação que precipita uma guerra entre duas das maiores famílias de Portugal e uma ultrapassagem pela direita de "PQP". Não tivesse sido ele um piloto de corridas que chegou a partilhar pista com Ayrton Senna na Fórmula 2.

Determinado a expor os Espírito Santo para retomar controlo do seu grupo, Queiroz Pereira contrata uma equipa de 16 advogados e técnicos da sua confiança para ir até ao Luxemburgo investigar as contas das holdings do GES, com especial ênfase para a Espírito Santo (ES) Control - na qual tinha uma posição de 10,6% - que por sua vez, detinha 50% da Espírito Santo International (ESI).

“Fui à procura de números para mostrar que estavam a fazer isto sem dinheiro. Que era uma vigarice completa.”

Estamos em setembro de 2013 e Pedro Queiroz Pereira já tem preparado um dossiê com as contas da ES Control e de outras holdings dos Espírito Santo. Pede uma audiência formal com o Banco de Portugal, mas não esconde ao Ministério Público que o seu verdadeiro propósito é negociar com Salgado a posição do GES na Semapa.

Eles queriam tomar conta do meu grupo e eu queria forçar negociações. Então entreguei meia dúzia de folhas ao Banco de Portugal. Na altura dizíamos que o buraco do GES era de 3 mil milhões de euros. Viemos depois a saber mais tarde que era muito mais.”

No mês seguinte, PQP é recebido pelo vice-governador do Banco de Portugal e consegue o que quer: Salgado vê-se pressionado a negociar e enviar dois homens do BESI (BES Investimento) - José Maria Ricciardi e Francisco Cary - para chegarem a acordo para a venda de ações que o GES tinha da Semapa.

A troca é simples: Queiroz Pereira entrega os 7,67% do GES que tinha na altura e, em troca, o GES recambia os 40% das ações da Semapa.

E depois de conseguir o que queria, "PQP" recua: aprova as contas desse ano da ES Control e escreve uma carta ao Banco de Portugal, na qual informa que tinha recebido “explicações satisfatórias” sobre a qualidade das contas e dava o assunto por encerrado. Não voltou a falar sobre o assunto até à queda do banco.

"PQP" conta como Salgado “comprou” Marcelo

Para trás fica o momento em que Queiroz Pereira estabelece as ligações entre Ricardo Salgado, o “Dono Disto Tudo”, e Marcelo Rebelo de Sousa, atual Presidente da República, quando este era líder do PSD.

“Todos sabemos que o professor Marcelo Rebelo de Sousa é uma pessoa influente na sociedade portuguesa e todos sabemos que o dr. Ricardo Salgado é um homem poderoso em Portugal”, começa por contar, referindo que, “a certa altura”, Marcelo “diz mal do Grupo Espírito Santo” - o que causou uma “friagem muito grande”, por serem companheiros de férias e amigos de longa data, os Salgado, Marcelo e Rita Amaral Cabral.

“No discurso foi conveniente falar mal dos grupos económicos e a relação ficou tremida. Só que os interesses eram grandes demais porque Marcelo tinha interesses políticos”, indicou Queiroz Pereira no depoimento ao Ministério Público em 2018, meses antes de morrer. O empresário indica que tudo aconteceu entre 2004 e 2005, mas Marcelo foi líder do PSD entre 1996 e 1999.

“O doutor Rebelo de Sousa tinha poder político, mas não tinha poder económico. O doutor Salgado tinha poder económico, mas não tinha poder político”, explica Queiroz Pereira, que diz que, para resolver o assunto, “encomendaram as mulheres” para remendar o assunto e promover um reencontro entre Salgado e Marcelo.

Foi então que Salgado começa um plano para reatar relações com Marcelo, pegando no departamento jurídico do Grupo Espírito Santo e encomendando trabalho de cobranças ao escritório de advogados da companheira de Marcelo, Rita Amaral Cabral, para recuperar a relação com o agora Presidente da República.

Segundo a testemunha, “60 a 70%” do trabalho do escritório de advogados era dado pelo BES, com Salgado a colocar ainda a companheira de Marcelo como administradora da Semapa, a empresa em que Pedro Queiroz Pereira era líder.

E conclui: “Isto era uma forma de comprar o doutor Marcelo Rebelo de Sousa. Isto é mesmo assim, não era?”

Durante a sessão, Queiroz Pereira também não esqueceu a maneira como Ricardo Salgado e quem administrava o BES pensavam que "mandavam no país", revelando ameaças do líder do Grupo Espírito Santo a governadores do Banco de Portugal, como Carlos Costa.

"Ele chegou a dizer a governadores [do Banco de Portugal]: 'eu estou cá há muitos anos, os governadores mudam'", disse o ex-empresário no seu testemunho, acrescentando: "Assim como quem diz: ' vê lá se tenho de falar com alguém para te tirar'. Era de uma prepotência desmedida".

No final da sessão, a defesa de Salgado quis esclarecer que o ex-banqueiro "não comprou, nem ameaçou ninguém" e que o depoimento de Pedro Queiroz Pereira "não tem nada de factual".

Ecoaram as palavras de Pedro Queiroz Pereira em 2015, durante a comissão parlamentar de inquérito: “Devo dizer que o dr. Ricardo Salgado tem um problema: não lida maravilhosamente com a verdade”.

Ulrich. "Se não tivesse sido bancário, tinha sido juiz"

O início da sessão começa de maneira bem-disposta, com o advogado Rogério Alves a indicar a Fernando Ulrich em tom leve que o seu lugar deveria ser atrás de si, ao lado de outras pessoas da banca. Depois, em resposta à juíza, o presidente do Conselho de Administração do BPI pede educadamente que não o trate por doutor, por não ter terminado a licenciatura.

Mas rapidamente o tom mudou. À primeira pergunta do Ministério Público, sobre o empréstimo do banco à Espírito Santo International (ESI), no valor de 100 milhões de euros, à holding do Grupo Espírito Santo numa altura em que já existia um buraco de milhares de milhões de euros, Ulrich mostrou-se visivelmente irritado.

Não sou eu que estou a ser julgado, nem está o BPI, essa pergunta serve para quê? Por que tenho de explicar as negociações do BPI?”, questionou, com a juíza Helena Susano a explicar que não é esse o “escopo das perguntas”.

O Ministério Público explicou que pretendia perceber a “vida da ESI” e de que maneira o BPI acompanhou os últimos anos de vida da holding do Grupo Espírito Santo.

Mas Ulrich, de perna cruzada durante a audição, não estava interessado. “Sei que estou a cumprir um dever, numa ocasião importante, mas faz-me muita impressão o que estão a fazer. Sem incluir as perdas dos lesados, estamos a falar de 18 mil milhões de euros e está a perguntar-me sobre o impacto de uma relação de crédito de 100 milhões de euros? Se continuarmos assim, daqui a 10 anos ainda vamos cá estar. Para que serve o que me está a perguntar, se estouraram com 18 ‘bis’, provavelmente mais de 20?”, perguntou.

Durante duas horas tensas, Ulrich vai mostrando relutância em encontrar propósito nas perguntas do Ministério Público e dos assistentes do processo. Espreguiça-se e estica os braços no seu lugar, a juíza disponibiliza-se para um intervalo, “caso esteja cansado”.

Até que, já em jeito de desabafo, o banqueiro diz mesmo que isto é “o que não se deve fazer”, relativamente ao julgamento, e sugere se “não teria sido mais fácil demonstrar” a existência de “gestão danosa” no banco e no Grupo Espírito Santo.

Estoura um banco e um grupo com prejuízos de 20 ‘bis’ [mil milhões de euros]. Eu era o responsável por um dos principais bancos. E chego aqui e só conheço três arguidos e vejo arguidos que provavelmente só estavam a executar ordens. Só tenho duas grandes aspirações para este julgamento: que consigam arranjar soluções para compensar as vítimas e que saia daqui uma lição para todos daquilo que não se deve fazer”, disse, considerando que o Governo estava “errado” em relação à resolução do banco, que considerou “imprudente”.

Em resposta, a juíza trava rapidamente o depoimento, considerando as palavras de Ulrich um “estado de alma” e que, se a testemunha quisesse discutir o assunto com o Ministério Público, poderia fazê-lo fora do tribunal.

“Tenho o maior respeito pelo seu trabalho. Se não tivesse sido bancário, teria sido juiz”, diz Ulrich.

Os “sinais de fraqueza” do BES e o aviso ao Banco de Portugal

Além de trocar impressões sobre a natureza do julgamento e questionar a natureza das perguntas, Ulrich teve tempo para explicar o porquê de ter exposto ao Governo e Banco de Portugal as suas preocupações com o GES.

O chairman do BPI indicou em testemunho que costumava apresentar um slide em reuniões da administração com a relação entre o alto aumento de capital de bancos e os baixos dividendos atribuídos para explicar dificuldades financeiras noutros bancos que não o BPI.

“A Caixa Geral de Depósitos, o BCP e o BES fizeram aumentos de capital em muito maior dimensão que os dividendos que distribuíram a acionistas. Com o BPI foi o contrário. Esses aumentos de capital não eram sinais de força, eram sinais de fraqueza”, acrescenta Ulrich.

Em resposta a um dos advogados de lesados, Ulrich refere a medo que quem renegociava o crédito do BPI à ESI, no valor de 100 milhões de euros, eram quadros superiores - “acho que era o doutor Salgado”, mas sem confirmar.

“Digo-lhe amanhã”, acrescenta. Perante a insistência sobre nomes, irrita-se: “Isto vai durar anos, qual a diferença se responder amanhã?” E foi então que a juíza Helena Susano responde: “Tem alguma bola de cristal para saber que vai durar anos?”

O primeiro aviso do chairman do BPI ao Banco de Portugal aconteceu em meados de 2013, quando o crédito à ESI já tinha sido liquidado. E o próprio Ulrich não esconde a verdadeira motivação por detrás das queixas ao BdP.

O que me preocupava, na altura, eram as consequências da situação do GES, que pudessem vir a ter nos BES e que gerassem um problema sistémico e nos pusesse todos em perigo. Não era pelos 100 milhões”, afirma Ulrich.

O presidente do Conselho de Administração do BPI apresenta ainda a tese de que os contribuintes “não suportaram” a queda do BES. “Quem perdeu foram os acionistas do BES, os obrigacionistas que passaram para o banco mau, os bancos através do Fundo de Resolução e os clientes que compraram os produtos.”

E mais: se os bancos tivessem sido obrigados a arcar com o prejuízo do GES de uma vez, um terço dos bancos portugueses deixaria de existir. “Era isso que me preocupava. Não ia falar com o governador por causa de um cliente”, diz.

Mas, perante questões de transparência do BES, voltou a não querer responder. “Não percebo o que estou aqui a fazer. É uma pergunta opinativa.”

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