observador.ptObservador - 23 out. 00:18

Kamala é uma má candidata

Kamala é uma má candidata

Kamala Harris é tão má candidata que, mesmo bafejada por um tratamento mediático favorável e ter como opositor um Trump, é vista por boa parte do eleitorado como o mal maior a evitar nestas eleições.

Quanto mais Kamala Harris fala e se expõe – nomeadamente em entrevistas minimamente desafiantes – pior candidata se revela. Percebem-se assim cada vez melhor as razões que levaram a campanha Democrata a tentar proteger até ao limite a sua candidata presidencial. De facto, Kamala foi extremamente resguardada tendo a sua campanha reduzido a sua exposição mediática em contextos mais desafiantes ao mínimo até ao momento em que a queda nas sondagens levou a uma inversão de rumo. O pior – para os Democratas – é que a exposição de Kamala Harris a mais entrevistas reforçou a percepção de impreparação e incapacidade (a este respeito a recente entrevista à Fox News, apesar de deliberadamente curta, foi particularmente notória e danosa para Kamala).

Aliás, o dado mais preocupante para os Democratas das sondagens mais recentes não é o empate técnico que se continua a verificar (e que deixa tudo em aberto) mas a constatação de que, depois do pico de popularidade atingido por Kamala Harris a seguir à sua entronização sem primárias, a candidata presidencial Democrata se encontra em queda acentuada (em especial entre eleitores independentes e jovens), confirmando os efeitos negativos da sua maior exposição mediática.

Os mesmos que fecharam os olhos perante o evidente declínio das faculdades mentais do Presidente Joe Biden fingem hoje não perceber que Kamala Harris é, evidentemente, uma muito má candidata. Tão má que, não obstante beneficiar de um tratamento mediático francamente favorável e ter como opositor uma figura como Donald Trump, é vista por boa parte do eleitorado nos EUA como o mal maior que importa evitar nestas presidenciais. Pelo que se tem visto, dificilmente Kamala Harris teria conseguido a nomeação Democrata numas primárias competitivas (como aliás sugere a sua experiência no processo em 2019). Como bem realçou Rui Albuquerque:

“As coisas não vão bem para Kamala, que foi uma solução de última hora do Partido Democrático e que está a pôr os seus camaradas com os nervos em franja. Já agora, o auxílio de emergência de figurões como Obama e Clinton não me parece que ajude a candidata. Pelo contrário, diminuem-na, porque parece que ela é incapaz de ganhar sozinha a eleição. Um erro de estratégia que realça o pior que ela tem aos olhos do eleitorado: a sua fragilidade.”

Mas importa ir além da cada vez mais evidente fragilidade de Kamala Harris para compreender como é possível que Donald Trump tenha neste momento reais possibilidades de ser eleito pela segunda vez Presidente dos EUA. O fenómeno Trump (e é, em muitos aspectos – tanto pela positiva como pela negativa – de um verdadeiro fenómeno que se trata) não pode ser compreendido sem levar em linha de conta a forma como a reacção contra o desastre neoconservador alterou profundamente a política norte-americana e, em especial, o Partido Republicano. O neoconservadorismo – com origens num conjunto de ideólogos que transitaram da extrema-esquerda para o mainstream político dos EUA nos anos 1960 e 1970 – foi no fundo uma mutação de velhos conceitos marxistas. Para os revolucionários neocons, caberia aos EUA promover o demo-liberalismo laico, progressista e globalista por todos os meios necessários – incluindo “guerras de libertação” e “mudanças de regime”  promovidas a partir do exterior. Como bem sintetiza Jaime Nogueira Pinto no seu ensaio sobre a nova direita americana na revista Crítica XXI (nº 8, p. 8):

“Donald J. Trump chegou à política como um meteoro. Foi a partir de 2012, bem passado dos 60 anos, que o milionário do imobiliário de Nova Iorque deu os primeiros passos entre aqueles que iriam ser os «seus» — a América popular conservadora, cansada das administrações Clinton e Obama, mas também desiludida com o internacionalismo democrático de George W. Bush, orientado pelos neo-conservadores na resposta ao 11 de Setembro. Resposta que se saldara em longas e distantes guerras para converter às instituições da democracia liberal euro-americana as periferias perigosas do Iraque e do Afeganistão.”

De facto, sem neoconservadorismo dificilmente haveria Trump. Foi o desastre neoconservador e a consciência crescente dos seus resultados desastrosos que abriu espaço no Partido Republicano para a emergência do fenómeno Trump – que conseguiu capitalizar a seu favor a rejeição do neoconservadorismo contra o establishment Republicano. O vírus neoconservador que contaminou o GOP terá atingido o seu auge no início dos anos 2000 mas as consequências nefastas da doença prolongam-se até aos dias de hoje. De tal forma que não é possível compreender Trump sem perceber como se posicionou como uma alternativa ao que Viriato Soromenho-Marques designou, numa expressão feliz, como o “predomínio da arrogância e frivolidade unipolar dos neoconservadores”.

O facto de muitas das principais figuras do neoconservadorismo em decadência se terem agora colado a Kamala Harris é, neste contexto, sintomático. Veja-se por exemplo os casos de Dick Cheney e da sua filha Liz Cheney, que tem inclusivamente aparecido em acções de campanha de Kamala Harris. É particularmente irónico que Liz Cheney denuncie Trump como uma ameaça à democracia quando o próprio Joe Biden já se referiu a Dick Cheney como tendo sido “provavelmente o vice-presidente mais perigoso de toda a história dos EUA”.

Kamala tem afirmado estar orgulhosa destes apoios mas teria sido bem mais sensato manter uma distância prudente relativamente ao refugo neoconservador, um activo tóxico que Trump afastou do GOP e que hoje tenta parasitar o Partido Democrata por mero instinto de sobrevivência. O acolhimento dos neoconservadores soma-se assim às cada vez mais notórias fragilidades de Kamala para enfraquecer a sua candidatura. De tal forma que, não obstante todos os seus – não menos notórios – problemas, Donald Trump pode mesmo vencer as eleições de Novembro.

Como resumiu o Papa Francisco em Setembro aludindo às eleições nos EUA e depois de expressar reservas tanto relativamente a Donald Trump como a Kamala Harris: “Deve-se escolher o menor de dois males. Qual é o menor de dois males? Aquela senhora ou aquele senhor? Eu não sei.”

O problema para Kamala Harris é que quanto mais ela fala mais eleitores parecem ficar convencidos de que Trump pode mesmo ser o mal menor entre os dois.

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