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Katja Oskamp. Renascer a partir da planta dos pés

Katja Oskamp. Renascer a partir da planta dos pés

Em Marzahn, Mon Amour, o leitor depara-se com um retrato de um bairro operário nos arredores de Berlim, onde a atividade de pedicura permite a uma frustrada escritora de meia-idade retratar a Alemanha contemporânea e obter por fim o almejado triunfo literário.

Katja Oskamp (1970) é uma escritora e dramaturga alemã. Estudou Teatro e Literatura. Em 2003 escreveu o seu primeiro livro Halbschwimmer e em 2007 publicou a novela Die Staubfängerin. Depois destes dois livros publicados e premiados, ficou muitos anos afastada do meio literário alemão até escrever Marzahn, Mon Amour em 2019 editado agora pela Relógio D’Água, com tradução de Ana Falcão Bastos.

Há uma imagem metafórica a percorrer todo o livro. Um grande lago. Oskamp está a meio desse lago. Tem 45 anos quando escreve estas 16 curtas narrativas que surpreendentemente lhe valeram em 2023 o Prémio Internacional de Dublin. Surpreendentemente porque há anos e anos que vinha a escrever livros que chegaram a ser recusados por vinte editoras.

“Os anos da meia-idade, em que já não és nova e ainda não és velha, são nebulosos. Já não avistas a margem de que partiste, e ainda não distingues com suficiente nitidez a margem para a qual te diriges. Nesses anos, esperneias no meio do grande lago, ficas sem fôlego, perdes as forças devido à repetição dos movimentos que fazes a nadar. Desesperada, paras e rodas em torno de ti mesma, uma volta, depois outra e outra ainda. Surge o medo de ires ao fundo a meio do caminho, sem tom nem som.”

Mas Oskamp não foi ao fundo. Mesmo desanimada com o fracasso da sua carreira literária, uma única filha a viver longe de casa e um marido doente. Em 2015, ela decide aventurar-se num curso de pedicura para ocupar o tempo e a cabeça. Não tinha nada a perder, pelo contrário. Nesse curso todas as mulheres com quem vai aprender o seu novo ofício conhecem bem o sabor amargo do fracasso. “Mães de meia-idade, esforçadas e corajosas, representantes anónimas de uma zona intermédia anónima, reduzidas a notas de rodapé da sua própria vida.”

Oskamp narra na primeira pessoa esta experiência e apresenta com frescor e amenidade os testemunhos dos seus pacientes e também destas mulheres com quem tirou o curso e com quem trabalha. Ela vai decorar os nomes dos 28 ossos do pé, a estrutura da unha, os nomes dos utensílios com que tem de tratar as mais variadas deformações e calosidades, os tipos de cancro da pele, os cuidados a ter com o pé diabético, as fissuras, as gretas, os fungos e todos os efeitos dos tratamentos à base de plantas. Numa primeira abordagem pode não parecer um estudo muito sedutor, mas, com esforço, ela consegue o tão desejado certificado, e vai sentir-se orgulhosa de si própria, como há muito não se sentia. Oskamp vai conquistar com a sua simpatia o coração de todos os seus pacientes. Vai recordar-lhes os seus melhores anos, as suas melhores qualidades. Nunca se vai esquecer de lhes dar um sorriso ou uma palavra de ânimo.

“Quando te tornas invisível, podes fazer coisas terríveis, coisas maravilhosas, coisas absurdas. Ninguém te vê. A princípio não falei a ninguém do meu programa de reciclagem. Quando mais tarde o fiz, acenando, a rir, com o certificado, deparei-me com uma antipatia, uma incompreensão e uma piedade difíceis de suportar. De escritora a pedicura era uma queda fulminante.”

Oskamp não se deixou demover por nenhum preconceito, e pela pedicura tentou manter-se à superfície do grande lago. Nem que fosse para poder respirar mais livremente. Estava certa que assim jamais se afogaria. Que seria um bom recomeço de vida. E acabou por ser, porque foi através desta área, ou seja, descendo ao nível dos pés, que ela se conseguiu refazer também enquanto escritora e ser humano.

Enquanto descalça os sapatos aos seus pacientes, liga a broca à tomada, lhes lava os pés, amacia os calcanhares gretados, trata de calos, unhas endurecidas difíceis de cortar e raspa peles ásperas e ressequidas, vai acumulando histórias, que no final figuram como pequenos mosaicos vivos, únicos, coloridos e representativos de uma Alemanha contemporânea.

Marzahn não é um bairro glamoroso no centro de Berlim. É, sim, um bairro operário nos arredores, situado a noroeste da cidade, feito de cimento e betão armado, porém desde há algumas décadas, disfarçado com bastante cor. É o bairro com mais cães registados. Por mais graça, simpatia, humor e uma certa leveza que haja nestes contos, todos têm algo de árido e de marginal. É que Marzahn é, em certa medida, o lugar dos esquecidos, dos refugiados, dos humildes, dos dominados, por isso a temática central que percorre cada história é o braço de ferro contra uma dupla invisibilidade. Não só a de Oskamp enquanto escritora, mas também na relação com o próprio bairro, que continua a ser negligenciado. Por mais espaços verdes que existam atualmente, e zonas de lazer, uma boa rede de transporte, o Skywalk, um desafogado centro comercial, não se pode esquecer que foi a maior extensão de blocos de torres pré-fabricados da Europa.

De acordo com Becky Danks, “o leitor tem uma visão panorâmica de uma comunidade que testemunhou mudanças sociais épicas, e cada vinheta fornece um vislumbre de uma nação em pontos-chave da sua história. Da II Guerra à queda do Muro de Berlim, estas são histórias locais com significado global. A estrela da história é, sem dúvida, o próprio Marzahn, um bairro de Berlim Oriental que no seu apogeu foi um bastião de esperança e modernidade”.

O livro acaba por despertar a curiosidade por este subúrbio com os seus blocos gigantescos de apartamentos sem isolamento acústico, que, segundo Danks, “são um legado duradouro de um mundo perdido de vigilância e suspeita, expondo vidas privadas em toda a sua comédia e tragédia.”

Mas Oskamp, expondo uma série de vidas, num tom trágico-cómico, nunca chega a retratá-las com um tom intrusivo ou sentencioso. Pelo contrário.

A ironia que leva a que tenha sido o curso de pedicura a recolocar Oskamp no centro do mapa literário alemão está ligada ao facto de ser pelos pés dos clientes deste salão de cosmetologia e massagens que o leitor vai ficar a par dos seus trajectos e das suas vivências. Cada personagem empresta o seu nome como título a um conto e todas são pessoas comuns, na grande maioria residentes no bairro e de idade avançada, algumas já reformadas e todas muito solitárias. Umas são viúvas, outras têm deficiências, outras sobrevivem com muita dificuldade.

A narradora trata os pés de muita gente. Antigos pedreiros, talhantes, enfermeiras, escritoras, uma criadora de gado, uma empregada da estação de serviço, uma vendedora industrial. Ainda há o mito de que nesta zona da cidade só vivem antigos elementos da RDA e funcionários do SED (Partido Socialista Unificado da Alemanha). Oskamp é perita em estilhaçar mitos, principalmente no que toca a este bairro, e como prova disso menciona que só tem um único cliente que em tempos teve ligações à política. Esse cliente é o Senhor Pietsche, que no auge da sua carreira chegou a ser secretário distrital do Partido e organizador partidário de direita, mas que, hoje, perto dos 70 anos e com oito bypasses, vive sozinho num apartamento minúsculo de uma única divisão.

Marzahn pode não ser, e nem vir nunca a ser um bairro icónico e emblemático de Berlim, mas este livro é um retrato imperdível da literatura alemã atual.

No conjunto destas histórias está acima de tudo a captura exata de um retrato comunitário real. Para a autora, a comunhão entre as pessoas, a empatia, a disponibilidade para ouvir o próximo, para lhe massajar as contraturas da solidão e da velhice são o elemento de resgate para que a sociedade não afunde de vez.

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