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Um tempo de suposições: a era de Onan

Um tempo de suposições: a era de Onan

Autocontrolado e mais disciplinado do que Narciso, Onan tem como meio de afirmação a rede social, na qual convive, prudentemente e com medida, com o algoritmo.

Oxalá vivas tempos interessantes.
Aforismo (origem indeterminada)

O que a nova fase do individualismo ocidental nos reserva é, em rigor, imprevisível. Desde o século XIX, os modos de socialização e de individualização, balançando entre a tragicidade romântica e o hedonismo pós-moderno, expropriaram as sociedades do escopo colectivo e da participação em grupo, e permitiram a erosão das identidades sociais, além de corroerem as estruturas ideológicas coercivas e as meramente disciplinadoras. Alguns, como Francis Fukuyama, chamaram-lhe o fim das ideologias, a última fase do homo aequalis. Em poucas décadas, o herói romântico deu lugar a D. Juan, o sedutor e seduzido, incapaz de não ceder a uma tentação e ao primado da aparência, e, em simultâneo, vítima da sua prostração e da exploração alheia, na inaptidão sentida para evitar a exibição “romântica”. Ou seja, D. Juan transporta em si, ainda, o drama do individualismo trágico (não o individualismo hedonista) que a literatura, em cambiantes distintas, espelhou na obra de Beckett, Kafka ou Hamsun.

Na era de Narciso, a do homo clausus e do homo aeconomicus, desligado das prescrições colectivas, passou a viver-se para si mesmo, com uma indiferença pelo outro absolutamente radical, afirmando-se o individualismo puro sem tragicidade, desembaraçado de valores morais e sociais e emancipado de qualquer enquadramento transcendente, como o das ideologias ou das crenças. Perdeu-se o sentido do sagrado. Chamou-se a esta cultura neonarcisista pós-modernismo. A despolitização, a dessindicalização, a criação de pretextos (por vezes, estereotipados) para desmistificar as ideologias – em especial a marxista –, de modo a justificar o não compromisso com causas, ganharam proporções inéditas. Nunca, como hoje, se falou tanto no problema da pobreza sem um pingo de comprometimento político; nunca se foi tão arrogantemente hipócrita. Há também uma certa ironia em a filantropia estar nas mãos de uma burguesia que se arroga o direito de equacionar a miséria social do mundo, sem questionar o direito de propriedade, que apenas a si assiste, e sem exprimir, de forma convicta, os deveres dos ricos para com os pobres e os deveres do Estado para com todos. Trata-se da filantropia telescópica, como lhe chamou Dickens, “porque não consegue ver nada mais perto do que África”, a filantropia e desenvolvimento humano de algumas ONG, associações, fundações, institutos e duvidosos projectos de iniciativa privada; o “amor” que, dirigindo-se a todos, não alcança ninguém. Sabemos como o negócio da pobreza é lucrativo.

Nesta era de Narciso, a explosão livre das emoções, como na fase anterior (a era de D. Juan), foi substituída pelo encerramento em si mesmo, ou pela discrição e prudência, apoteose do signo (em vez do contacto) e instrumentos do self-control. Não há excessos nem tensões que ponham as pessoas fora de si. O que há é a retracção sobre si mesmas, a falsa “reserva”, a vaidade controlada, e a interiorização que caracteriza o narcisismo, no modo inverso à exibição “romântica”. Mas não ficámos por aqui.

Caminhamos a passos largos para a era de Onan, aquele que, não apenas investido de uma ordem individualista, se reveste de uma consciência moral de utilidade própria. A era do homo fagicus, daquele que se alimenta de si mesmo. Onan já não cai na impostura de beijar os seus próprios lábios no espelho da água, como Narciso: ele mantém intactos a fome, o frio, a sede onde se sacia.

Autocontrolado e mais disciplinado do que o seu antecessor, o meio de afirmação de Onan é a rede social, na qual convive, prudentemente e com medida, com o algoritmo. Ele sabe que a inteligência artificial nos enfraquece, nos domestica, nos seduz, se aplica a convencer-nos de que pode saciar-nos, que a originalidade individual e impulsiva é um bem a conquistar, mesmo não passando de um simulacro do mundo. O mundo, em boa verdade, já não existe: é uma projecção. Na sua esfera privada, Onan, esse monstro frio, está atento não às pessoas, mas às reacções das pessoas, indivíduos doravante isolados, hologramáticos, silhuetas ou perfis, pouco permeáveis aos juízos dos outros, indiferentes na sua desafecção e no culto da vida privada. Nesse sentido, Onan é atento ao duplo visto azul do whatsapp, ao impacto do reel, ao comentário esporádico, à notificação, aos sinais de presença ou ausência do semelhante, a uma semiótica da comunicação que nem a linguagem do leque do século XVII suporia. Toda a sua conduta se rege por um sentido de auto e heteroespeculação, que descarta a cada instante.

Onan é atento ao duplo visto azul do whatsapp, ao impacto do reel, ao comentário esporádico, à notificação, aos sinais de presença ou ausência do semelhante, a uma semiótica da comunicação que nem a linguagem do leque do século XVII suporia

A conversa foi subtraída pelo comentário (num inglês fantasista e parolo), pelo flip efémero, pela reacção subtil, pelo emoji sintéctico, pelo avatar burlesco, pelas funcionalidades expressivas e pelos signos de massa. A observação, substituída pela vigilância. Os papéis masculinos e femininos parecem perpetuar-se e o neofeminismo desfaz-se diante dos nossos olhos numa redução indigente: as mulheres, dissecando sem o saberem o próprio ridículo e vacuidade, exibem partes do corpo (ou os sofás da sala) a pretexto de mostrarem a capa de um livro, e a reacção a isso torna-se jogo de ambiguidade. Os silêncios e as ausências acentuam a duplicidade e os equívocos. Dando azo a más interpretações, elas queixam-se de assédio, eles de desestabilização e encenação, e todos se protegem. Todos, em geral (e sublinhemos as belas e humanas excepções), encobrem os tiques e camuflam a mesquinhez e todos os vícios, numa voragem de assepsia moral e bondade. Os próprios desejos de viver e de morrer deixaram de ser antinómicos, mas “vontades” sem projecto.

Já não se vive nada: diz-se que se vive. A fruição é a exibição da fruição. O esforço da escrita passou a espectáculo caricato pela exposição auto-registada do escritor, que se filma e mitifica a escrever. O prazer da vida tornou-se o catálogo do prazer. Toda a linguagem de Onan é metalinguagem. Não é possível distinguir a satisfação, da afirmação da satisfação. Não se sabe nada: supõe-se. O núcleo é um grande vazio, uma vasta falta de consistência: tudo o que é sólido se dissolve no ar. Onan, diga-se, derramou o esperma na terra para acautelar a condição de primogénito que um seu filho lhe roubaria.

O processo de personalização pode estar incompleto, não o sabemos. Para já, passámos da era de D. Juan à de Narciso, e desta à de Onan. Tudo tem um preço.

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