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"Tenho cinco cirurgias nos tornozelos". Filipa Martins chega a Paris de olho na final, a sua medalha de ouro

"Tenho cinco cirurgias nos tornozelos". Filipa Martins chega a Paris de olho na final, a sua medalha de ouro

A melhor ginasta portuguesa de sempre quer voltar a fazer história. Em entrevista à Renascença, Filipa Martins fala sobre as lesões, as dores e os objetivos para o futuro, assim como daqueles momentos em que a melhor rede é o apoio dos que a rodeiam.

Filipa Martins já aprendeu a conviver com a dor. Ela está lá, por vezes, quando a ginasta acorda e percebe que, nesse dia, o treino não poderá ser o habitual. Está lá, também, em cada falha e em cada frustração, e quando Filipa se deita e se pergunta como será o dia de amanhã. Mas não a impede de querer sempre mais.

"São sempre as lesões que me impedem de treinar como eu quero e como eu gosto, para atingir aquilo que eu quero", lamenta a melhor ginasta portuguesa de sempre, em entrevista à Renascença.

O título não é à toa. Filipa prepara-se para competir nos terceiros Jogos Olímpicos da carreira, depois do Rio 2016 e de Tóquio 2020 (em 2021). Foi 37.ª no "all-around" (conjunto das várias disciplinas) no Brasil, resultado inédito para Portugal, e 43.ª no Japão. Agora, o sonho é conseguir o que ainda não foi feito: o apuramento para a final "all-around" de Paris 2024.

Até lá, contudo, Filipa foca-se na preparação. E em ouvir o que o corpo lhe diz.

"Tenho cinco cirurgias nos tornozelos. Há dias melhores, há dias piores, e tento sempre prevenir ter mais lesões, mas acabo sempre por não saber bem o dia de amanhã. Se vou acordar com mais dores, se vou acordar com menos dores. Isso é o que me deixa mais frustrada, porque quero treinar e às vezes não consigo, e vou ter de não treinar direito naquele dia", conta.

Aos 28 anos, Filipa Martins é das mais velhas da lista de participantes na prova individual de ginástica artística em Paris. Superam-na apenas a mexicana Alexa Moreno e a neozelandesa Georgia-Rose Brown, ambas com 29 anos (a primeira fará 30 logo no início de agosto). A idade e as lesões tornam a sua gestão física e tática mais complicada.

Assim o conta José Ferreirinha, treinador da ginasta desde 2019, juntamente com Joana Carvalho: "Temos de andar a gerir isto muito bem. Às vezes, é dramático. Ela já é uma mulher, já vamos falando. Com a Filipa é muito conversado, o que podemos fazer hoje e o que não podemos. É pela maturidade dela e porque ela é que sente. É o corpo dela. Tem funcionado bem, já nos últimos dois, três anos. E é o que é possível."

É dia a dia, portanto.

Foto: Estela Silva/Lusa Foto: Estela Silva/Lusa

Filipa Martins recebeu a Renascença a uma quarta-feira. É dia de treino leve, no Complexo Municipal de Ginástica da Maia, onde o Acro Clube da Maia, que a ginasta representa, divide espaço com outro clube. Por vezes, a convivência é complicada: têm de se revezar na utilização de espaços e aparelhos, e a música de uns incomoda os outros.

Filipa treina como se estivesse no seu próprio mundo. Sempre atrás dela, os pintainhos: as restantes jovens que treinam a seu lado seguem cada exemplo que a ginasta olímpica dá.

"Sou tipo a mãe delas. É um bocadinho de responsabilidade de ajudá-las. Sou a mais velha, já estou aqui há mais tempo e conseguir ajudá-las e encaminhá-las da melhor forma", explica. Não surpreende, portanto, a escolha de carreira para quando deixar de ser atleta: "Quero ser treinadora. Vou tentar passar um bocadinho desse exemplo às minhas atletas. Sei que em alguns momentos da minha adolescência também não tive os melhores exemplos e, se calhar, não fui o melhor exemplo [risos], mas é assim que se cresce e que se aprende, também."

A ginasta já o faz, de certa forma, nas redes sociais. Tem mais de 60 mil seguidores no Instagram, em que partilha um pouco do dia a dia como atleta. À chegada a Paris, mostrou imagens da Aldeia Olímpica, inclusive uma "selfie" com o tenista espanhol Rafael Nadal.

O objetivo é atrair fãs e praticantes para a ginástica artística, que "ainda está um bocadinho reduzida, a nível de visibilidade", em Portugal: "Mesmo quando temos competições a nível nacional, temos sempre pouco público a ver, são mais os pais das atletas."

"Tento usar as redes sociais para transmitir aos mais novos que tudo se consegue treinando muito e abdicando também de algumas coisas. Tento mostrar um bocadinho mais da nossa modalidade todos os dias, porque há sempre pessoas que, por acaso, vêem e ficam a conhecer também", assinala.

Foi também por palavra de boca que Filipa Martins entrou na ginástica, ainda com quatro anos, por iniciativa dos pais.

"Fazia sempre aquelas atividades no infantário e depois, mais tarde, a mãe de uma colega minha, que trabalhava, já, na FADEUP - porque eu entrei pelo Sport Clube do Porto, que treinava lá na FADEUP -perguntou se eu não queria lá experimentar, porque achou que eu tinha alguma destreza, não sei. Os pais levaram-me lá e comecei a praticar ginástica lá", revela.

Assim se construiu uma ginasta de elite, sem descurar os estudos. Filipa está a tirar o mestrado em treino de alto rendimento, precisamente de olhos postos no pós-carreira.

A rotina amainou, neste último ano de mestrado, em que tem "muito menos aulas, muito menos exames" e pode focar-se mais na tese: "Acabo por ter um bocadinho mais tempo para estar em casa e descansar." Os dias dividem-se, precisamente, entre a elaboração da tese e os treinos.

"Quando estamos em preparação para os Jogos Olímpicos, alguns meses antes acabamos por fazer treinos bi diários. Ultimamente nem tanto, porque o meu corpo também já tem bastantes anos de ginástica e, às vezes, menos é mais. Descansar mais neste momento tem-me ajudado um bocadinho mais. Mas claro, tentando sempre que os treinos rendam da melhor forma", vinca.

Voltam os problemas físicos, realidade inescapável para Filipa Martins: "Há sempre anos melhores e anos piores."

"Estes últimos anos não foram muito fáceis para mim, nem para as minhas lesões. O Campeonato da Europa deste ano, o Campeonato da Europa no ano passado e a minha falha no Campeonato do Mundo do ano passado acabaram por me deitar um bocadinho abaixo. Então, este Campeonato do Mundo foi uma lufada de ar fresco, não só por me ter apurado para os Jogos, mas por ter conseguido fazer, outra vez, uma prova em que me sentisse bem, sem dores. Estava no meu mundo a fazer a prova e isso é o mais importante: divertirmo-nos e realmente gostarmos daquilo que estamos a fazer em competição", realça.

É um sentimento repetido por José Ferreirinha, que refere que Filipa tem de estar "tranquila e segura" para fazer uma boa prova. Só assim consegue entrar na bolha que aprendeu a criar para si própria durante as provas.

Quando algo falha, há sempre quem esteja lá para apanhá-la. "É sempre bom sentir esse apoio, carinho e conseguir ter algumas pessoas a quem recorrer em momentos mais críticos. Isso é sempre a família, o namorado e claro que os meus treinadores também estão sempre aqui para o que eu precisar", assume Filipa.

Ainda assim, errar "é sempre um bocadinho desgastante mentalmente e frustrante". Cada prova dura meros minutos, mas a preparação demora meses ou e o trabalho para chegar aos maiores palcos é de anos: "Depois, chegamos lá, temos tipo um minuto e meio, no máximo, em cada aparelho e corre mal. Acho que no momento acabamos por ir um bocadinho abaixo, mas tento sempre, a cada competição, boa ou má, tirar sempre alguma aprendizagem, para conseguir também evoluir na próxima."

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Joana Carvalho, que também a treina, dá conta da força mental e da ambição de Filipa Martins.

"Ela quer sempre mais alguma coisa. E isso é bom, para nós é ótimo. Enquanto treinadores, é sempre desafiante", enaltece.

José Ferreirinha confirma que a ginasta tem uma mentalidade forte, que lhe permite progredir a cada ano, apesar de já estar para lá dos 25 anos: "O que é interessante na Filipa é que ela com esta idade, que seria já só para manter a forma, ela motiva-se. Podia dizer, 'Ferreirinha, estamos bem assim, vamos deixar correr'. Mas ela quer sempre mais."

Há um segundo "mas", este com reticências. É um "é para ver e decidir", porque, pese embora a ambição, Filipa continua a ter a idade que tem e o peso das lesões e das cirurgias não desaparece.

São cinco operações nos tornozelos, até agora, quatro num e uma no outro. Resultado de um desporto em que não há maior risco do que o momento em que os pés voltam a tocar no chão.

"Uma receção de um salto [aparelho] equivale a entre 15 a 20 vezes o peso do corpo nas duas pernas. Ela [Filipa] pesa 57, 58 quilos - imaginemos que são 60. São 900 a 1.200 quilos nas duas pernas", revela Ferreirinha.

Normalmente, os ginastas estão preparados para isso, mas basta um erro e não aterrar totalmente de frente, "e esses 1.200 quilos em vez de ser nas duas pernas são numa só". "E vai um joelho ou um pé à vida", atira o treinador.

A gestão do risco é um jogo de puxa e empurra, mais ainda quando se aproxima a mais importante prova de todos, os Jogos Olímpicos. Há riscos que Filipa não correrá até o tempo começar a contar: "E mesmo nos Jogos depende do sorteio da ordem dos aparelhos."

Foto: Erdem Sahin/EPA Foto: Erdem Sahin/EPA

Não é somente Filipa Martins que lida com a pressão da dúvida. Simone Biles, por muitos considerada a melhor ginasta artística da história, desistiu de todas as finais menos a trave, em Tóquio 2020, por razões de saúde mental e segurança. A norte-americana explicou que tinha perdido a orientação no espaço, algo que expõe os atletas ao risco de lesões quando aterram.

Biles afastou-se da modalidade, depois dos Jogos Olímpicos, e só regressou à competição dois anos depois.

A alta competição é dura, mais ainda quando acarreta riscos para a saúde tão prementes. Por isso mesmo, é importante estar confiante do que se faz. Por vezes, mais vale sacrificar a espetacularidade pela segurança. Foi o que Filipa Martins fez, mesmo depois de ter feito história com um novo elemento técnico, com que inscreveu o seu nome nos cadernos da ginástica artística: "The Martins."

"Nas paralelas, tivemos de reduzir um bocadinho a dificuldade. Ela andou aí dois anos com uma dificuldade 'top' mundial, quando foi às finais, quando apresentou o elemento dela. Mas era muito arriscado e começou a falhar, depois começaram a não reconhecer uma coisa, ela começou a transmitir que ficava muito ansiosa... Baixámos bastante, mesmo quase um ponto na dificuldade, mas ela ficou mais tranquila e fez um Campeonato do Mundo excelente", assinala José Ferreirinha.

A ponderação, na verdade, está em linha com o estilo de Filipa Martins. Pode não ser a mais exuberante, mas é das que "faz as coisas com menos erros, menos falhas, menos descontos".

"Sempre viveu muito da qualidade de execução: o que faz, faz bem. No Campeonato do Mundo, de 150 atletas no solo, umas 50 faziam muito mais piruetas do que ela. Só que ela, as poucas que faz, faz bem e, depois, na parte artística, é bonita a trabalhar, o que também é importante, e tira melhores notas do que atletas que fazem mais difícil", sustenta o treinador.

O "Martins", contudo, será sempre um dos pontos altos da carreira de Filipa: "Nunca sabemos o quão grande nós somos até conseguirmos fazer algo que nunca imaginámos conseguir fazer. E acho que só depois de isso acontecer é que nós percebemos. Não percebi na hora, não percebi passado uma semana, não percebi passado seis meses. Para nós, é rotina. É rotina, rotina, rotina, e às vezes acho que não temos a noção daquilo que somos capazes."

A ginasta já viu o seu elemento repetido em vídeo, mas não ao vivo. Talvez nos Jogos Olímpicos, ou depois disso. São esses momentos, mas não só, que fazem com que tudo faça sentido.

"Tudo aquilo de que eu abdiquei algum dia, tudo aquilo que me esforcei mais ou menos em qualquer dia, todo o sacrifício por que passamos é sempre recompensado, não só pelas vitórias, mas por tudo aquilo que aprendemos ao longo da nossa carreira, ao longo da nossa vida. O desporto em geral ajuda-nos a crescer muito enquanto pessoas, também, por isso é sempre muito benéfico e agradeço muito por estar nesta modalidade", salienta.

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Agora, os Jogos Olímpicos. Os terceiros, já, para Filipa, depois de "duas experiências muito diferentes". A primeira no Brasil, "num país que falava a mesma língua", e a outra "ali no meio da pandemia, sem público, o que foi completamente diferente". A cada Olimpíada que passa, a portuguesa sente "um bocadinho menos de pressão" e quer sempre "divertir-se mais, usufruir mais de todo o ambiente".

Em Paris, terá os dois treinadores, depois de, em Tóquio, só ter podido ter o apoio de Ferreirinha, devido à pandemia da Covid-19. "Ela no outro dia ela falava que eles em Tóquio comiam com os acrílicos", comenta Joana Carvalho.

Filipa mal pode esperar pelo espírito da aldeia olímpica, em que "às vezes, naquela cantina enorme, entra alguém conhecido ou alguém que teve um ótimo resultado e toda a gente bate palmas".

Na pista, o objetivo é fazer história - outra vez. As medalhas até podem ficar para outros, porque, com as "muitas dificuldades em conseguir apoios", chegar a Paris "já é uma vitória enorme". Mais ainda quando, todos os dias, se convive com a dor. Ainda assim, Filipa Martins sonha.

"O nosso objetivo é tentar a final all-around. Apurarmo-nos para isso é tão difícil que para nós já é medalha de ouro", declara.

É a partir de domingo que a melhor ginasta portuguesa de todos os tempos tentará, mais uma vez, superar a dor e os limites da história. Começará com a qualificação, a 28 de julho. A final individual "all-around" está marcada para quinta-feira, dia 1 de agosto. As finais de aparelhos - barras paralelas, salto, trave e solo -, para que Filipa Martins também tentará apurar-se, realizar-se-ão nos dias seguintes.

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