expresso.ptJosé Soeiro - 25 jul. 09:05

Trabalhar num forno

Trabalhar num forno

O problema do calor extremo e do “stress térmico” tem merecido cada vez mais atenção internacional, num planeta que atravessa uma crise climática sem precedentes. A Organização Internacional do Trabalho chamava a atenção para que “temperaturas superiores a 39°C podem matar”

Numa loja do minipreço do Porto, o ar condicionado está avariado há dez dias. Esta semana, com a onda de calor que temos vivido, as temperaturas chegaram aos 42º dentro do minimercado. Com apenas uma porta que dá para o exterior, falta ventilação e trabalha-se numa estufa insuportável. Aparentemente, não será caso único na mesma cadeia. Mas dá que pensar: pode alguém ser obrigado a continuar a trabalhar nestas condições?

Em princípio, não. Um velho decreto de meados da década de 1980 estipula que, nas atividades de comércio, escritórios, hotéis, restaurantes, cafés, serviços públicos ou salas de espetáculo, por exemplo, a “temperatura dos locais de trabalho deve, na medida do possível, oscilar entre 18ºC e 22ºC, salvo em determinadas condições climatéricas, em que poderá atingir os 25ºC.” (DL 243/86). Mas o que fazer quando os patrões não agem e a Autoridade para as Condições de Trabalho se limita a dar orientações? E fora do comércio e serviços, em estufas ou na construção civil, que regras se aplicam?

O problema do calor extremo e do “stress térmico” tem merecido cada vez mais atenção internacional, num planeta que atravessa uma crise climática sem precedentes. Por estes dias, atingimos o recorde de temperaturas. Num relatório publicado em 2019, a Organização Internacional do Trabalho chamava a atenção para que “temperaturas superiores a 39°C podem matar” e para a situação particularmente grave dos trabalhadores agrícolas (mil milhões em todo o mundo), dos têxteis (66 milhões), da recolha de resíduos, dos transportes (nomeadamente os que estão nos portos e aeroportos ao ar livre) ou do turismo.

Já este ano, um novo relatório contabilizava em pelo menos 2400 milhões o número de trabalhadores expostos anualmente ao calor excessivo no trabalho, ou seja, 70% da força de trabalho global. Todos os anos, diz a OIT, há cerca de 23 milhões de acidentes de trabalho, quase 19 mil mortes relacionadas com o trabalho e milhões de anos de vida com qualidade perdidos devido ao calor excessivo. Este será um dos grandes temas que a OIT quer debater no próximo ano, para que haja orientações políticas globais que respondam a estes riscos climáticos.

Em Portugal, estamos muito atrasados no debate. Nos setores de grande risco, como a agricultura, o trabalho durante ondas de calor, com temperaturas extremas, vem junto com jornadas longas, exploração de imigrantes com poucos direitos, más condições de trabalho e de alojamento, vínculos precários e informais, desconhecimento dos direitos laborais. O recuo da sindicalização e da contratação coletiva, que poderia regular algumas destas questões, também não ajuda.

Claro que cabe às empresas, até pela Constituição, garantirem condições em que o exercício do trabalho seja compatível com a vida e a saúde. Mas a lei poderia ir mais longe, garantindo a avaliação dos riscos, a adoção obrigatória de ventilação, pausas e mesmo a suspensão de atividades durante períodos com determinadas temperaturas. É uma discussão que está a ter lugar à escala europeia. Deveria existir legislação vinculativa sobre os limites das temperaturas de trabalho. Isto é, ninguém devia ser obrigado a trabalhar a partir de uma certa temperatura; toda a gente que trabalha ao ar livre tem de ter, por exemplo, acesso a água, a equipamento ou a uma zona de sombra onde possa parar…

O tema até pode não ser novo. Desde 1958 que há Convenções internacionais que procuraram regular o trabalho com calor excessivo, nomeadamente na indústria. Mas há uma diferença: nunca tivemos um planeta tão quente. O fenómeno só irá piorar.

Há que olhar, sem dúvida, para a raiz do seu agravamento: o aquecimento global, o capitalismo fóssil, um modo de produção predatório. Mas há medidas urgentes que não podem ser adiadas. Em Espanha, há cerca de um ano, avançou-se com algumas. Em Portugal, o debate já foi levado ao Parlamento, em 2023, para que sempre que haja alertas meteorológicos os trabalhadores possam ser protegidos. É apenas um exemplo, mas mais tem de ser feito.

Até hoje, apesar dos debates, nenhum avanço foi ainda produzido. E no entanto, o tema é inadiável quando falamos de “trabalho digno” ou de “transição justa”.

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