www.sabado.ptPedro Proença - 25 jul. 10:02

Quando o desconhecimento da lei é um benefício político

Quando o desconhecimento da lei é um benefício político

Opinião de Pedro Proença

O artigo 6º do Código Civil prescreve que a ignorância da lei não justifica a falta do seu cumprimento, ou, que o desconhecimento da lei não aproveita a ninguém.

Mas, será assim no contexto da Comissão Parlamentar de Inquérito (C.P.I.) que investiga a eventual responsabilidade política no já célebre "Caso das Gémeas"?

As últimas semanas da vida conturbada da C.P.I. que investiga as condições em que as gémeas brasileiras beneficiaram de um apoio milionário do S.N.S. português fica marcada por diversas iniciativas de deputados dessa comissão, algumas com carácter potestativo, no sentido de forçar os visados a disponibilizarem informação tida como relevante ao apuramento da verdade.

Se bem que escudados no regime jurídico dos inquéritos parlamentares aprovado pela Lei nº 5/93 de 1 de Março, nomeadamente no respectivo artigo 13º nº 3 que estatui que as C.P.I. podem, através de requerimento fundamentado, solicitar por escrito informações e documentos que julguem úteis à realização do inquérito, os deputados têm evidenciado uma estranha ignorância quanto ao âmbito dos poderes da mesma.

Tudo começou com a recusa do filho do Presidente da República, Nuno Rebelo de Sousa, em prestar depoimento perante a C.P.I., invocando o seu direito a não prestar declarações visto ter sido já constituído arguido no inquérito crime que corre paralelamente ao inquérito parlamentar, o que lhe permite remeter-se ao silêncio.

Se a recusa de Nuno Rebelo de Sousa provocou visível agastamento nos deputados que integram a C.P.I., a conturbada audição do advogado da mãe da gémeas deixou-os à beira de um ataque de nervos. A audição foi suspensa hora e meia após ter começado quando o advogado de Daniela Martins se recusou a responder às perguntas invocando o segredo profissional dos advogados, facto que suscitou uma interpelação exaltada e bastante crítica dos deputados, nomeadamente de André Ventura.

Afinal, o advogado tinha mesmo razão como confirmou um parecer da Ordem dos Advogados no qual se refere, e citando: "...que o advogado está vinculado ao dever de guardar segredo sobre todos os factos de que tenha tomado conhecimento no âmbito da sua atividade profissional". Tal decorre do Estatuto da Ordem dos Advogados, lei aprovada pelos senhores deputados na Assembleia da República.

As iniciativas de fundamentação jurídica duvidosa não ficaram por aqui. À exigência de entrega das comunicações entre os visados (E-Mails e mensagens através de aplicativos), seguiu-se o pedido de entrega de documentação relativa ao seguro de saúde das menores na tentativa de esclarecer o papel e o interesse da mesma. Esta última iniciativa da C.P.I. terá tido por fundamento um parecer do auditor jurídico da A.R., o qual chegou a recomendar procedimento criminal por desobediência qualificada caso tais documentos não sejam entregues.

Para além dos próprios, um coro de vozes levantou-se a advertir para a ilegalidade das exigências da C.P.I., as quais ultrapassam clamorosamente o âmbito dos seus poderes legais, ofendendo direitos fundamentais dos visados consagrados constitucionalmente, bem como o princípio da prevalência da autorização prévia de um magistrado judicial e a própria reserva absoluta do processo penal. Não admira portanto que o próprio Presidente da A.R., numa decisão plena de bom senso, tivesse ordenado novo parecer acerca da validade das pretensões da C.P.I..

 A reação a estas reservas legais às iniciativas da C.P.I. chegou sempre pela voz do líder do Chega, traduzidas em veementes acusações de boicote das outras forças políticas ao trabalho de investigação da C.P.I..

A pergunta que muitos fazem é: Como é que os deputados que representam o órgão de soberania com competências legislativas ignoram ou parecem ignorar as leis que emanam no próprio órgão que representam?

A resposta está noutra pergunta: De que outra forma, senão com recurso a requerimentos de legalidade controvertida e, portanto, passíveis de ser rebatidos pelos visados, poderia o líder do CHEGA clamar por boicote à descoberta da verdade capitalizando assim a simpatia da opinião pública? É que é mesmo este o busílis da questão.

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De que outra forma, senão com recurso a requerimentos de legalidade controvertida e, portanto, passíveis de ser rebatidos pelos visados, poderia o líder do CHEGA clamar por boicote à descoberta da verdade capitalizando assim a simpatia da opinião pública?

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