visao.ptilopes - 25 jul. 18:00

Visão | A última crónica

Visão | A última crónica

Estou sobretudo reconhecido aos leitores que me seguiram semanalmente, que me dirigiram sempre palavras de apreço ou rebateram argumentos com os quais discordavam, num diálogo permanente que mantém a cabeça alerta e a escrita mais viva. Sem a vossa presença, nada disto faz grande sentido

Termino hoje a minha crónica semanal na Visão. Faço-o de livre e espontânea vontade, de bem com a revista e a sua direção. Aliás, não tenho dúvidas em afirmar que, em vinte anos de análise na imprensa, foi com a Visão que mais me identifiquei, a começar na sua estética, passando pelo jornalismo que pratica, com criatividade e pertinência, profundidade e cosmopolitismo, sensibilidade e bom senso. Foi, sem dúvida, na Visão em que mais gostei de escrever, numa coluna que me motivou quase diariamente a viajar pelos quatro pontos cardeais, a descobrir mais mundo além da nossa Europa, mais dilemas além da guerra e da paz, das eleições e das lideranças, mais ângulos cruzados numa reflexão permanente sobre a política internacional, que não é mais do que pensar e discutir sobre nós mesmos, Portugal e o seu papel no mundo.

Nestes dois anos e meio, em cento e trinta crónicas, procurei acompanhar o mais perto possível a evolução da guerra na Ucrânia, nos termos existenciais em que a entendo, numa Europa em choque com populismos, nativismos e nacionalismos, a resistir à pressão dos autoritarismos externos, aos caminhos inevitáveis das várias autonomias, dos alargamentos e dos ajustamentos. Olhei com mais detalhe para os debates internos em França, Alemanha, Itália, Reino Unido, Polónia ou Hungria, para os profundos choques que atravessa a democracia norte-americana, para os regimes russo e chinês, ou para as transformações no Japão, Indonésia e Turquia.

Procurei olhar para África através do dilema crescente da sua dívida externa, para a evolução dos BRICS, para a cristalização das organizações internacionais, para os multialinhamentos que caracterizam a ordem internacional em transição, para os riscos da concentração populacional nas megacidades na Ásia, na América Latina e em África, para a escassez de recursos, como a água, para a abundância extrativa de matérias-primas críticas essenciais às transições energética e digital, para o Ártico e os impactos das alterações climáticas, para o outro lado da grande estratégia Faixa e Rota chinesa, para as grandes tendências da globalização e como a social-democracia pode ter as melhores ferramentas para a influenciar positivamente. E livros e discos, muitos livros e discos, para nos ajudarem a arrumar ideias, a desconstruir outras, a iluminar a nossa vida, desacelerando-a.

É minha convicção de que a dicotomia interno/externo faz cada vez menos sentido analítico, e que as dinâmicas entre as duas definirão a consistência programática e a densidade executiva dos partidos e dos líderes políticos para responderem aos problemas complexos que enfrentam as nossas sociedades. Ver o que nos rodeia como exótico e longínquo é um erro. Compartimentar assuntos que diariamente se cruzam não passa de paroquialismo. Vergar aos ventos do nacionalismo é enfiar a cabeça na areia. Achar que os cidadãos não acompanham, não se interessam e não percebem é de um paternalismo sem sentido, que diz mais da atitude política do que da consciência cívica de quem elege. 

Creio, aliás, que quando escrevo sobre o mundo e os seus dilemas estou sempre a escrever, direta e indiretamente, sobre Portugal. Sobre os impactos nacionais do que nos rodeia, sobre as nossas virtudes e defeitos, sobre a nossa diplomacia, diáspora, partidos sistémicos e populistas, sobre as nossas instituições, o valor do oceano e das nossas relações com África e América Latina, sobre o nosso papel na construção europeia, os nossos nichos na inovação, ciência e tecnologia. No fundo, sobre o nosso perfil de País, de boas relações intercontinentais, com uma natureza de abertura e tolerância, que espero seja mantida e não estragada por uma vaga de energúmenos que querem enfiar Portugal novamente na era medieval. Não tem de ser assim, não pode ser assim.

Estou, por isso, grato à Mafalda Anjos e ao Rui Tavares Guedes por esta viagem nas páginas da Visão. Mas estou sobretudo reconhecido aos leitores que me seguiram semanalmente, que me dirigiram sempre palavras de apreço ou rebateram argumentos com os quais discordavam, num diálogo permanente que mantém a cabeça alerta e a escrita mais viva. Sem a vossa presença, nada disto faz grande sentido. A Visão e os seus jornalistas merecem que a vossa fidelidade permaneça.

Até sempre.

Norte

O britânico Loyle Carner deu um grande concerto há um ano em Paredes de Coura e regressa ao Meo Kalorama daqui a um mês. Fusão de hip-hop, jazz e grime, com muita poesia à mistura, tão bom em Not Waving, But Drowning, como ao vivo.

Sul

Jornalista e ativista dos direitos humanos, Karyna Gomes é um nome a acompanhar na música da Guiné-Bissau. Vi-a num emocionante concerto no Tarrafal e os seus trabalhos vão das raízes guineenses à música eletrónica.

Este

Shujaat Husain Khan, mestre indiano do sitar, descendente de grandes músicos da região de Uttar Pradesh, é uma descoberta recente que me prendeu, com folk, tradições locais, virtuosismo técnico e uma voz melodiosa.

Oeste

Os texanos Black Pumas lançaram Chronicles of a Diamond, um portento de soul, R&B, gospel e funk, com influências de James Brown, Wu-Tang Clan e mesmo dos clássicos Sam Cooke e Cornell Dupree. Foi um grande concerto no NOS Alive.

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Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

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