www.sabado.ptCarlos Neto - 25 jul. 15:51

Brincar não é uma disciplina curricular na escola

Brincar não é uma disciplina curricular na escola

Opinião de Carlos Neto

A área da educação tem vindo a ser motivo de grandes reflexões e debates nacionais e internacionais quanto a novas abordagens, estratégias e metodologias que devem ser consideradas na intervenção pedagógica nas primeiras idades. Grandes especialistas na área das ciências sociais e da educação, assim como instituições internacionais (UNESCO, OCDE, UNICEF, OMS, etc.), têm vindo a apresentar fundamentação científica, pedagógica, técnica e filosófica, quanto a alterações e diferentes cenários, (por vezes divergentes e contraditórios), na emergência de um novo paradigma para a escola do futuro. Esta situação é devida a uma vertiginosa transição digital, ecológica (climática, energética, ambiental, etc.), de saúde física e mental e diminuição de qualidade de vida e bem-estar de crianças e jovens. Esta nova realidade, exige a necessidade de regeneração de novas politicas sustentáveis, verdes, solidárias, criação de um "Novo Contrato Social para a Educação do Futuro – UNESCO, 2022)" e segundo uma lógica de se trabalhar em rede, juntos com uma governança coletiva. Especialmente em relação aos primeiros níveis de escolaridade (creche, Ensino Pré-Escolar, 1º e 2º Ciclo), temos assistido ao aparecimento de novas perspetivas pedagógicas centradas em abordagens alternativas de conceber o processo de aprendizagem das crianças, através da valorização de formas mais cooperativas e democráticas na sua participação e concebendo o contexto escolar de forma mais aberta à inovação, inclusão, pedagogia ativa, imersão em novos temas e colocando os alunos como protagonistas em função da sua capacidade de curiosidade e entusiasmo em aprenderem a pensar de forma crítica os fenómenos que as rodeiam. Temos já experiências pedagógicas muito interessantes no território educativo em Portugal, incluindo projetos em escolas públicas. Estou a referir-me a experiências pedagógicas que colocam como prioridade uma visão não tradicional e conservadora do ensino e assumem as ruturas necessárias para a criação de uma escola viva e ativa em que os alunos são convidados a se conectarem com novos saberes, experiências, projetos e numa dinâmica de expandir a sala de aula para o espaço exterior (escola ao ar livre) e descobrir, explorar, observar e recolher dados sobre o conhecimento que pode ser investigado em contato com as caraterísticas do património físico, cultural e artístico da comunidade. Será fundamental que se passe a valorizar como objetivo prioritário da escola, o trabalho de qualidade das aprendizagens dos alunos. Alterar substancialmente o prazer das crianças aprenderem e gostar de estar e deslocar-se para a escola, implica uma mudança de atitude em promover experiências mais ativas e colaborativas, mais consciência dos problemas ambientais, reconhecimento das diferenças individuais, integração cultural, mais relação com a natureza, aumento da mobilidade escolar e urbana autónoma, ultrapassagem de preconceitos relacionados com o risco e maior conciliação entre o tempo familiar, escolar, laboral e de lazer. Nestes níveis de escolaridade, o "motor inteligente" que permite alcançar um ambiente escolar com entusiasmo e participação, reside na existência de uma "atitude e ambiente lúdico" em todo o processo de vida escolar. Aprender através do brincar é uma estratégia muito séria e não pode ser desvalorizada pela comunidade educativa como um mero passatempo ou tempo inútil. O brincar promove intrinsecamente em cada criança uma predisposição motivacional favorável para estar disponível para aprender. Se existir empatia (vinculação afetiva) do adulto e um contexto sedutor de propostas e tarefas, a aprendizagem torna-se mais profunda e melhor assimilada a curto, médio e longo prazo.

A questão que queremos colocar, centra-se na ideia absurda de em muitas instituições e sistemas educativos se pretender iniciar uma estratégia de alteração de conceções e práticas educativas, diminuindo o tempo e uso de espaços físicos interiores e exteriores destinados ao brincar livre das crianças e potencializar mais tempo para aprendizagens enquadradas em saberes e formas tradicionais de aprendizagem, reunindo esse tempo lúdico numa atividade semiestruturada ou estruturada e enquadrada do ponto de vista curricular. Seria uma forma de ultrapassar a sempre incómoda organização dos recreios escolares e sua supervisão, necessidade de manutenção de superfícies, materiais e equipamentos naturais ou construídos artificialmente, potencializar espaços exteriores em projetos arquitetónicos com mais edifícios escolares ou estruturas de apoio (salas de aula) e rentabilizar ou alienar zonas verdes ou espaços informais necessários ao desenvolvimento de atividades de ar livre e contato com a natureza.  É desejável que as crianças não sejam penalizadas por interesses imobiliários ou modelos de construção das escolas, retirando ou eliminando espaços ao ar livre ou a não possibilidade de implementar projetos financiados em que se possa exercer uma pedagogia mais ecológica e amiga do ambiente. Estas alterações de funcionamento da organização espacial e temporal do currículo escolar seriam reunidas num tempo dedicado ao brincar orientado e estruturado pelos adultos numa perspetiva enganosa de valorização do tempo de brincar da criança. O brincar não se institucionaliza. O brincar não é e nem deve constituir-se como uma disciplina curricular nem deve estar sujeita a avaliação. Brincar não é possível escolarizar no desenvolvimento da criança. Não se pode isolar como uma unidade temporal definida de ação. O brincar é intemporal, por vezes caótico, sujeito a fracassos, erros, frustração e também descoberta de superação, aperfeiçoamento e sucesso. Aprender a brincar é diferente de brincar a aprender. Aprender através do brincar em qualquer tipo de atividade é a melhor estratégia para se interiorizar, assimilar e perceber o que se experimenta, vivência e se atribui significado. Deste modo, brincar é uma atitude mental que nos acompanha no nosso processo evolutivo e nos ajuda a desencadear mecanismos internos de autoaprendizagem, através de processos adaptativos e criativos. O brincar no ser humano é um comportamento transversal que está relacionado em todo o processo de aprendizagem seja qual for o conteúdo, contexto, e objetivo a ser trabalhado em termos educativos. Também deve ser discutido, que critérios científicos e pedagógicos existem para demarcar ou planear tempos escolares para as crianças poderem brincar (lazer, descanso, intervalo, recreio, etc.). Brincar não se divide ou planeia de forma rígida em tempos definidos com espaços ou materiais impostos segundo a necessidade de controlo e formatação dos adultos. Esta forma ardilosa de reduzir os tempos de brincar das crianças na escola a "uma disciplina" seria um disparate educativo e uma forma de negligência inaceitável (o brincar é um direito), ainda mais num momento de grande ausência de oportunidades de as crianças serem fisicamente ativas, sem relação frequente com o espaço natural, diminuição de autonomia de mobilidade, sociabilização e invadidas com narrativas digitais.

As orientações educativas emanadas pelo Ministério da Educação para as Creches, Ensino Pré-Escolar e 1º e 2º Ciclo de Escolaridade, são contrárias a esta recentes opiniões e conceções educativas, oriundas de vários setores interessados em plastificar e formatar a educação das crianças a rendimentos escolares imediatos e reduzindo o mais possível a educação informal ou não formal. Esta visão pedagógica excessivamente comportamentalista (principalmente na passagem para o 1º ciclo), têm estado patente nos últimos anos nas atividades de enriquecimento curricular (AECs), centros de apoio à família (CAFs) e atividades de tempos livres (ATLs), enquadradas no modelo de Escola a Tempo Inteiro. Estas formas de organização de atividades após o tempo curricular obrigatório, tem merecido imensas críticas no seu funcionamento, organização, tipos de atividades e definição de objetivos. Infelizmente, em muitas escolas, os espaços exteriores não têm sido valorizados pedagogicamente devido a uma visão conservadora da Educação, baseada no medo e num critério de segurança excessivo por parte dos adultos (legislação confusa e obsoleta sobre espaços de jogo e recreio escolares). Na maior parte das escolas, predomina a existência de "crianças limpinhas" e bem ajustadas a regras rígidas de comportamento em relação à possibilidade de mobilidade em jogo, aventura e relação social. O que que temos vindo a assistir é a existência de grande pobreza de uma geração poderosa em narrativas digitais (écrans) mas potencialmente frágil em saúde física e mental na preparação do seu futuro em resiliência, adaptação, sobrevivência e bem-estar.

A preocupação sobre o tema aqui apresentado e relacionado com o fato de não ser aceitável reduzir o brincar na escola a uma unidade disciplinar integrada no currículo, nada tem que ver com a necessidade de existência de cursos de licenciatura, pós-graduação, mestrado e doutoramento para educadores, professores, terapeutas, animadores, "PlayWorkers" e outros âmbitos profissionais, no âmbito do Jogo e Desenvolvimento da Criança que deviam ser ou já são ministrados no Ensino Superior Universitário e Politécnico. Essa é também uma necessidade de garantir a existência de profissionais especializados e habilitados em entender e desenvolver o brincar, jogo, atividade física, desportiva e artística no espaço escolar e comunitário. Precisamos de brincadores que ajudem as escolas e as crianças a descobrirem novas formas de aprendizagem com mais profundidade, liberdade, prazer, significado, naturalidade e humanismo. Mais crónicas do autor 07:00 Brincar não é uma disciplina curricular na escola

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