expresso.ptMiguel da Câmara Machado - 24 jul. 07:37

Os homens da (vice-)Presidente

Os homens da (vice-)Presidente

Tudo aponta para que Harris e o seu “selecionador” Eric Holder (antigo Procurador-Geral de Obama) escolham para VP um de três: o Senador Mark Kelly, o Governador Josh Shapiro ou o Governador Roy Cooper

Já todos lemos as notícias históricas: no final do dia 21 de julho de 2024, Joe Biden completou a “crónica de uma desistência anunciada” e abandonou a sua candidatura a Presidente dos Estados Unidos da América (“EUA”). Poucos minutos depois de publicar a carta em que o anunciava, declarou apoio, nas redes sociais, à sua Vice-Presidente, Kamala Harris, candidata derrotada nas primárias de 2020, para continuar a erguer a tocha, não olímpica, mas presidencial, na corrida, para manter acesa a luz azul contra os holofotes vermelhos (cor dos republicanos, partido rival) da Convenção que terminou dias antes.

Aparentemente não entrámos em modo “guerra dos tronos” no partido democrata e a “dança dos dragões democratas” está a conduzir a uma “coroação” rápida da vice-Presidente, com muitos “Homens da Presidente” a perfilar-se talvez mais para conseguir o lugar de vice-presidente (Veep” ou VP) no novo “ticket” eleitoral, sucedendo-se movimentos de “bend the knee” (o “ajoelhar” perante o novo governante) e as declarações de “não-candidatura” dos candidatos com maior potencial: os Governadores do Michigan, Gretchen Whitmer; da Califórnia, Gavin Newson; da Pensilvânia, Josh Shapiro; do Kentucky, Andy Bashear; o Senador Joe Manchin ou o Secretary of Transportion, Pete Buttigieg, ou as anteriores candidatas Hillary Clinton ou Amy Klobuchar.

Sendo pouco provável uma equipa totalmente feminina, todos queremos agora saber quem será o “Homem da Presidente”, o Veep que poderá alargar a sua base de apoio e reforçar uma candidata que está atrás nas sondagens e que é vista como fraca por muitos daqueles que observam de perto as eleições dos EUA. Depois de a escolha de Donald Trump para VP ter recaído sob o jovem senador J. D. Vance, do Ohio, tentando acrescentar frescura, intelectualidade (pelo percurso académico do candidato), e proximidade com o “rust belt” (Vance vem dos estados mais industriais e com trabalhadores, que antigamente votavam tradicionalmente no partido democrata), Harris deverá procurar outros equilíbrios.

Há cinco anos, a senadora da Califórnia foi uma das primeiras a anunciar a sua campanha presidencial, ainda em janeiro de 2019, num “programa da manhã” (quando a moda de “entrevistas políticas” fora do circuito habitual se começava a generalizar também em Portugal). Para ela, seguiu-se um ano sofrível, com uma campanha mal-gerida (pela sua irmã), com vários candidatos que a superaram nos debates, nos comícios, e na esperança de vencer o Presidente Trump e recuperar a Casa Branca para os democratas. Foi uma (pré-)campanha cheia de candidatos: o Senador Bernie Sanders regressou e manteve uma ala esquerda animada e entusiasmada, o Mayor de South Bend, Pete Buttigieg, foi uma surpresa que empatou/venceu logo as primeiras primárias no Iowa (numa confusão democrata) e inúmeros outros candidatos como os senadores Elizabeth Warren, Cory Booker ou Amy Klobuchar; os congressistas Beto O’Rourke, John Delaney, Joe Sestak ou Tulsi Gabbard; empreendedores ou antigos responsáveis por cargos públicos, como Julián Castro, Andrew Yang, Michael Bloomberg ou Bill de Blasio, num total de 27 candidatos que concorreram contra Kamala Harris e Joe Biden.

No entanto, pouco antes da pandemia de covid-19 nos fechar a todos em casa no final do inverno de 2020, o “partido” democrata, enquanto “entidade coletiva” com força e firmeza, “escolheu” Biden e os nomes fortes do partido apareceram publicamente a apoiá-lo, enfraquecendo rapidamente a “candidatura Sanders”. Assim, desde os casais que anteriormente ocuparam a Casa Branca (os Obama e os Clinton, responsáveis por alas diferentes do partido e poderosos angariadores de fundos), até ao congressista Jim Clyburn, afro-americano da Carolina do Sul, que fez um poderoso discurso que inverteu a tendência antes das eleições no seu estado, anteciparam-se várias desistências coordenadas (Steyer, Buttigieg ou Klobuchar), e todos levaram Biden a ter uma “Super Terça-Feira” (o dia em que mais estados votam nas primárias ao mesmo tempo) muito feliz, a abrir um mês de março que uniria o partido e começaria a focar os esforços contra um Presidente Trump com visíveis dificuldades a gerir a pandemia e o país perante tanta incerteza. A experiência de Biden fez dele um porto seguro.

Quatro anos depois, o partido democrata não teve umas primárias fragmentadas. Apesar de muitos terem especulado que Biden faria apenas um mandato, depois dos resultados conseguidos pelo partido nas eleições intercalares (em que só se vota para os congressistas e um terço dos senadores), em 2022, foi crescendo a sensação de que o presidente se recandidataria, apesar da sua provecta idade. Seguindo a tradição de não enfrentar “incumbentes”, os nomes fortes do Partido Democrata não concorreram e Biden atingiu, a 12 de março de 2024, o número de delegados necessários para conseguir a nomeação na Convenção Democrata que se irá realizar em Chicago entre 19 e 22 de agosto (uma tradição constitucional-eleitoral não escrita americana também dita que o partido que ocupa a Casa Branca tem a segunda convenção, normalmente em agosto, e o que desafia tem a primeira convenção, como a que os republicanos tiveram na semana passada no Milwaukee, Wisconsin (importante estado para a matemática eleitoral).

Em 2008, o partido democrata esteve dividido entre Hillary Clinton e Barack Obama, antes de se render à oratória e à mitologia que se gerou em torno daquele candidato que, ainda hoje, inspira esperança e deixou “magia política” que se tentou, de certa forma, recuperar com o seu vice-presidente, em 2020 e, agora, se quer passar a Kamala, já circulando “memes” com a mensagem “YES WE KAM” e posters com os mesmos tons dos de Obama. Contudo, em 2016, aquele presidente honrou o acordo que terá feito para pacificar o partido em 2008 e apoiou Hillary Clinton (e não o seu VP, Biden) e o partido voltou a dividir-se entre esta e Bernie Sanders, mais à esquerda, tendo chegado à primeira terça-feira de novembro com a inesperada vitória de Donald Trump a surpreender quem apostava naquelas eleições.

Em 2024, Joe Biden fez História de várias formas diferentes: (i) é o primeiro e único candidato a vencer as eleições primárias e a não se apresentar a eleições; (ii) é o primeiro presidente incumbente a não se recandidatar desde 1968, quando Lyndon Johnson (LBJ, que sucedeu a JFK depois deste ser assassinado) também anunciou que não se recandidataria tardiamente e permitiu uma Convenção “aberta” (ou “em aberto”, com os delegados livres para decidir o candidato, curiosamente também em Chicago); e (iii) é o primeiro presidente eleito (LBJ chegou ao cargo por vacatura) a não voltar a concorrer desde 1880, quando o Presidente Rutherford B. Hayes decidiu não se recandidatar.

Curiosamente, aprender com a História e com o Presidente Hayes poderia ser uma boa forma de hoje se procurarem soluções para os “Homens da Presidente” Harris. E aprender com as histórias e a ficção também. Em 1999 foi lançada uma belíssima série de televisão com o título, em português, “Homens do Presidente” (no original, The West Wing), escrita por Aaron Sorkin, contando, em cada episódio, aventuras de um governo de sonho, com homens e mulheres bem-intencionados e soluções “fora da caixa” para os problemas políticos e campanhas eleitorais inesperadas.

Em novembro de 1876, nenhum partido atingiu aparentemente os votos necessários para eleger um presidente: (i) o candidato democrata, de Nova Iorque, Samuel J. Tilden, terá conseguido 186 “grandes eleitores”, com uma maioria composta pelo sul conservador e parte da costa leste; (ii) Rutherford B. Hayes, terá obtido 166 (mas criticando uma supressão dos votos de afroamericanos, seus partidários - os partidos posicionavam-se, então, em lugares opostos do espectro: o partido democrata era o partido do sul, “conservador” e segregacionista e o partido republicano era o partido de Lincoln, que tinha terminado com a escravatura, dominava no norte progressista). Com os votos da Florida, Louisiana e Carolina do Sul ainda em dúvida no dia 11 de novembro, seguidos de acusações de fraude eleitoral, grandes eleitores desqualificados, entre outros problemas, a questão eleitoral foi arrastada até janeiro de 1877. Então (como hoje), havendo dúvidas, cabe à Câmara dos Representantes decidir e votar. No entanto, para saber sequer se havia dúvidas, o Congresso e o ainda Presidente Ulysses S. Grant decidiram nomear uma “Comissão Eleitoral” para determinar o destino dos votos em dúvida. Nuns EUA ainda feridos pela Guerra Civil recente, foi importante procurar consensos e garantir bipartidarismo: 5 congressistas, 5 senadores e 5 juízes do Supreme Court, com 7 democratas e 7 republicanos que iriam ser presididos por um 15.º membro: o juiz David Davis, um independente respeitado por ambos os partidos. Este equilíbrio foi questionado quando os democratas do Illinois tentaram eleger Davis para o Senado, esperando conquistar o seu voto. O juiz desapontou os democratas ao recusar pertencer à comissão, que acabou por eleger um outro juiz do Supremo Tribunal, Joseph Bradley, para presidir. A comissão acabou por atribuir os votos em dúvida a Hayes.

Recordar o Presidente Rutherford B. Hayes pode ser importante porque ele, ao contrário de Biden, “soube sair” e, mais, soube jogar politicamente com isso. Em 1877, não era seguro que a sua eleição fosse aceite pacificamente, mas Hayes surpreendeu os democratas com três promessas: iria cumprir apenas um mandato de 4 anos e regressar a casa; iria concluir a “Reconstrução” que estava em curso desde o fim da guerra civil e iria retirar as tropas que ocupavam os estados do sul.

Também hoje é necessário fazer algo de inovador e encontrar “Homens da Presidente” que (re)construam consensos e pontes e contribuam para unir a América.

Sorkin escrevia, há dias, que Kamala Harris podia convocar, para seu vice-presidente, um nome “fora da caixa”: Mitt Romney, candidato republicano contra Obama em 2012, um senador muito moderado, alguém que tem criticado o Presidente Trump, que votou contra muitas das suas medidas e apoiou o Presidente Biden nestes anos mais recentes. Eu juntaria outras duas possibilidades: Paul Ryan, que foi o candidato a vice-presidente de Romney, que foi Speaker (Presidente da Câmara dos Representantes) com(tra) Trump, que é um dos muitos republicanos “decentes”, desiludidos com o atual candidato; uma terceira hipótese, mais difícil, poderia ser a de Marco Rubio, senador da Florida que, como Jeb Bush ou John Kasich, concorreu contra Trump em 2016 e que se esperava ter mais hipóteses e que foi agora preterido como vice-presidente (tendo sido “gozado” pelo Presidente Trump e podendo abrir espaço a uma “reconquista” democrata da Florida, importantíssimo estado para as contas eleitorais).

Romney é um senador, no melhor sentido do termo, uma voz de bom senso, experiente e seria uma prova de que a Presidente Harris queria arriscar, mas reunir a América; Ryan foi quem apresentou a juíza nomeada por Joe Biden para o Supreme Court ao Senado (têm relações familiares, mas também de amizade, fortes) e tem sido uma voz moderada e crítica; Rubio ainda pode ter vontade de se afirmar contra Trump e mostrar o político que prometia ser antes de 2015, quando se imaginava um partido republicano melhor. Três “R”s de compromisso republicano (e democrata).

No entanto, no dia 23, tudo aponta para que Harris e o seu “selecionador” Eric Holder (antigo Procurador-Geral de Obama) escolham para VP um de três: (i) o Senador Mark Kelly (do Arizona, veterano de guerra, antigo astronauta da NASA e marido da Congressista Gabby Giffords que sobreviveu a uma tentativa de assassinato, mais forte do que a de Trump, em 2011), o Governador Josh Shapiro (da Pensilvânia, muito próximo de Kamala, com um percurso semelhante como procurador); ou (iii) o Governador Roy Cooper (da Carolina do Norte, mais velho e experiente, que poderá trazer outros equilíbrios), mas nenhum é um verdadeiro Compromisso, como o de 1877.

Há 250 anos, Washington formou um governo de Founding Fathers com pensamentos diametralmente opostos. Quase 100 anos depois, Lincoln formou um governo de rivais e Grant e Hayes procuraram manter compromissos. É disso que a melhor política se faz e se fez. E os EUA precisam.

Vamos ter um verão em grande, mas ver esta temporada dos “Homens da Presidente” promete. E o que ela escolher pode ser determinante para, em novembro, ter uma terça-feira de sonho.

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