sol.sapo.ptJoana Andrade - 23 jul. 08:36

A ideologia californiana. A matriz do Novo Mundo

A ideologia californiana. A matriz do Novo Mundo

O absolutismo tecnológico não melhorou os homens, não somos mais livres, felizes e democratas, mas transformou em dogma a crença que a liberdade individual é inseparável da submissão às leis naturais do progresso tecnológico e do livre mercado.

Devíamos relativizar os sobressaltos políticos do presente, a emergência de uma Nova Direita e eventual Nova Esquerda ou o significado da irrupção de fenómenos como Trump e Bolsonaro. Sorriamos perante os arautos de uma democracia liberal de alternativa única com o apoio societal do esquerdismo. Coloquemos no baú das recordações Marx, Gramsci, Hayek, Friedman e Keynes. Deixemos a social-democracia nórdica, o socialismo democrático, a democracia cristã, os partidos conservadores e liberais e até mesmo os extremismos de direita ou de esquerda para os manuais de história. Esses protagonistas são meros figurantes de um drama maior. No mundo real é outro paradigma que triunfa e progressivamente adquire a sua forma definitiva. Trata-se de uma revolução portadora da mudança definitiva da história da humanidade. Referimo-nos ao que foi baptizado com o nome de ideologia californiana. Essa é a ideologia que está a moldar estruturalmente o mundo que já é o de presente e de modo único.

Estamos no início da última fase do hiperliberalismo e desse novo capitalismo, em que a própria dinâmica de uma ideia de mercado se impõe às decisões políticas situadas e só compreenderemos o homem a partir de uma nova antropologia, a do desenraizamento. Numa etapa seguinte, muitas decisões que considerávamos políticas já nem serão tomadas unicamente por humanos. A gestão das sociedades e do planeta será planificada e administrada de modo tecnológico por elites com um poder que faria inveja à velha aristocracia do absolutismo. Os estados transformaram-se em plataformas de um poder não democrático que deve ser iludido sob a aparência de desempenhos ditas democráticas, geridos por um poder transnacional, sem escrutínio e inatingível, que dita as regras mundiais que cada nação deve colocar em prática. A ágora electrónica democrática transformou-se numa espécie de matrix onde cada indivíduo na solidão da sua casa, do seu trabalho e telemóvel vive encerrado e cada vez mais afastado da verdadeira realidade e onde assistimos ao crescimento de assimetrias sociais e económicas crescentes entre pessoas e entre países e ao criar de um abismo intransponível entre as elites e as pessoas comuns.

Um dos alertas de Barbrook e Cameron confirmou-se: «Os profetas da Ideologia Californiana argumentam que apenas os fluxos cibernéticos e os redemoinhos caóticos dos mercados livres e das comunicações globais determinarão o futuro. O debate político, portanto, é um desperdício de fôlego. Como libertários, eles afirmam que a vontade do povo, mediada pelo governo democrático, é uma heresia perigosa que interfere na liberdade natural e eficiente de acumular propriedade. Como deterministas tecnológicos, eles acreditam que os laços sociais e emocionais humanos obstruem a evolução eficiente da máquina. Abandonando a democracia e a solidariedade social, a Ideologia Californiana sonha com um nirvana digital habitado apenas por psicopatas liberais.».

A realidade dos estados, das nações, das soberanias, da intervenção estatal, da vontade popular, do primado dos “muitos” sobre os “poucos”, da regulação dos mercados, do controlo do desenvolvimento industrial e tecnológico para fins sociais e democráticos, o florescimento dos média comunitários e de ágoras electrónicas democráticas, a importância das instituições públicas, da ideia da tecnologia como a condição de um mundo próspero e bom não é real.

O fatalismo económico e tecnológico predominou sobre as noções de comunidade e de progresso social. A nova visão de libertação social idealizada pela contracultura revelou-se, foi transformada em produtos comerciais e força de liquidação das resistências que significavam os laços morais, sociais, culturais e familiares, ou seja, as características fundamentais da identidade humana.

Este mundo caracterizado pela avidez sem limite dos empresários liberais, das tecnologias e da contracultura da “Califórnia” define o novo e último capítulo do liberalismo com humanos. O futuro próximo será o do transhumanismo, da hibridação homem e máquina, sacrificando o mundo humano a essa nova ideia de progresso sob o signo do ilimitado.

A explosão do potencial das ciências cognitivas, das nanotecnologias, da inteligência artificial, da engenharia genética e das biotecnologias fazem parte da exponenciação de novas formas de acumulação de capital, mas o seu objecto final será a produção do homem aumentado que levará à substituição do humano. A ilusão de se ter descoberto a fonte inesgotável da valorização do capital, num mundo unicamente tecnológico, onde o ser humano se tornará obsoleto, tornará até a noção de capital inútil, ou então, mudará o seu significado. Eis o mundo global encerrado em sistemas informáticos e digitais, onde se produz o que é a realidade e a verdade, e se projecta a própria obsolescência do homem.

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