expresso.ptHenrique Burnay - 23 jul. 16:41

A Europa sem fim de Von der Leyen

A Europa sem fim de Von der Leyen

Quanto mais o processo democrático europeu se tenta parecer com o processo democrático nacional, mais se cria a convicção de que a Comissão Europeia responde ao povo europeu, modificando a natureza da União

Úrsula Von der Leyen voltou a ser eleita presidente da Comissão Europeia, desta vez com uma maioria ainda maior. A boa notícia é que há um acordo amplo sobre os compromissos e as cooperações que devem existir entre os principais partidos europeus. A má notícia é até onde vai, nesse acordo, o entendimento sobre o que são as competências da União Europeia. Vai longe demais.

A meio do discurso, depois de discorrer sobre um dos temas que mais preocupa um grande número de europeus, o custo e acesso à habitação, a Presidente da Comissão Europeia anunciou que, pela primeira vez, ia nomear um Comissário Europeu que teria sob sua responsabilidade, precisamente, o tema da habitação. Confrontada com a evidência de que essa não é uma matéria que os Tratados tenham especificamente incluído nas competências da União Europeia, nem uma que o princípio da subsidiariedade indique que seja melhor tratada a nível europeu do que nacional, a presidente da Comissão Europeia declarou que podia ser assim, mas que “se é importante para os europeus, é importante para a Europa”. A justificação: “alguns podem dizer que não devemos nos envolver. Mas eu quero que esta Comissão apoie as pessoas onde mais importa”.

A questão que aqui se coloca não é sobre a bondade de contribuir para resolver um problema que os europeus têm. Nem se duvida inteiramente da possibilidade de haver alguma coisa que possa ser feita, a partir de Bruxelas, que contribua para a resolução, ou diminuição, do problema da habitação a nível nacional. A questão é outra, parece irrelevante porque ninguém gosta de perder tempo com conceitos, e é da maior importância. A doutrina que aquela frase pretende estabelecer, e para onde os últimos anos nos têm levado, é uma enorme transformação da natureza da União Europeia. Sem mudar uma vírgula nos Tratados, mas mudando vários pontos finais na política.

A 29 de Outubro de 2004, os Estados membros da União Europeia assinaram um Tratado que estabelecia uma Constituição para a Europa. Vários países anunciaram que pretendiam referendar a sua aprovação. O que aconteceu em Espanha, onde foi aprovado, e em França e nos Países Baixos, onde foi chumbado. A ideia morreu aí. Até agora, pelo menos.

Depois do falhanço do Tratado Constitucional, em 2007, durante a presidência portuguesa, fez-se o Tratado de Lisboa, que ainda foi rejeitado uma vez pelos irlandeses, mas acabou aprovado, com alterações e reservas, em 2009. São essas as regras que desde então governam a União Europeia.

Durante a crise financeira, e subsequentes Troikas, a União europeia assumiu maiores poderes, mas fê-lo sobretudo a partir do Conselho, onde se sentam os governos e se sentavam Merkel e Sarkozy. Neste último mandato, sobretudo durante a pandemia, mas também perante a guerra e o vazio de poder nas principais capitais europeias, a Comissão Europeia, liderada por Úrsula Von der Leyen, obteve enorme poder de facto. Que quer manter e alargar.

A resposta à pandemia, mais até do que a mobilização da Europa para o apoio à Ucrânia, fez crer que perante grandes crises, a resposta tinha de ser europeia. E para evitar os egoísmos nacionais, tinha de ser liderada pela Comissão. Essa é a doutrina que Von der Leyen quer estabelecer quando diz que, mesmo que não seja competência da União, “se interessa aos europeus, interessa à Europa”. E, Von der Leyen não formulou assim, mas concluiu desta maneira: se interessa à Europa é, de alguma forma, competência da Comissão Europeia. Não é verdade, mas corre o risco de passar a ser.

Desaparecidos, pelo menos formalmente, os federalistas, levados pelo chumbo do Tratado Constitucional, o federalismo regressa pela política e pela resposta aos anseios dos cidadãos. Uma organização criada para ajudar os Estados a prosseguir os seus fins, torna-se numa organização ao serviço do povo. Parece bonito, mas não é isento de problemas.

Quanto mais se insiste que o processo democrático europeu se tem de parecer com um processo democrático nacional – ignorando que a escolha dos altos cargos por acordo entre governos e entre governos e Parlamento é absolutamente democrática -, mais se cria a convicção de que a liderança da Comissão Europeia responde ao povo, aos eleitores. E se os eleitores querem casa, dê-se-lhes uma política de habitação. E por aí adiante.

Este processo tem, pelo menos, dois problemas sérios. As competências e matérias da União Europeia devem ser definidas pelos Estado, detentores da soberania e legitimidade democrática fundadoras. Não deve ser a União, menos ainda a Comissão Europeia, a estabelecer a doutrina das suas próprias competências e dos seus poderes. Além disso, a União Europeia não deve prometer o que não pode cumprir, sob pena de se transformar um processo político de sucesso numa desilusão para os europeus eleitores.

A União Europeia é demasiado importante. É onde os Estados membros, representados por governos, e os cidadãos, representados pelos Deputados, podem aceitar compromissos, fazer cedências, reunir esforços, aumentar a sua força, escala e capacidade global, para resolver o que precisa de escala europeia. Não é, ou pelo menos não deve ser sem que se pergunte se é isso que os europeus querem, uma alternativa aos Estados que formam a União Europeia. Mas é isso que um dia quererá dizer o que Von der Leyen disse.

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