expresso.ptJosé Soeiro - 11 jul. 12:25

O veto de Macron contra quem salvou a República: 3 notas sobre as eleições francesas

O veto de Macron contra quem salvou a República: 3 notas sobre as eleições francesas

O efeito desta manobra de Macron de não permitir que a Nova Frente Popular forme governo será só um: rebentar com a confiança na possibilidade de a democracia gerar alternativas. Caso consiga, será mais um favor, depois de tantos outros, ao desespero e à extrema-direita
Salvar a República foi polarizar em torno de uma alternativa democrática

A vitória da Nova Frente Popular em França contrariou sondagens e cenários e furou o plano de Macron. Foi a esquerda que, unida em torno de um programa forte, polarizou com a extrema-direita e salvou a República. Fê-lo apresentando uma alternativa nos antípodas da governação para os ricos que Macron promoveu, com ataques às reformas, aos salários, aos direitos laborais ou aos direitos dos imigrantes. A França Insubmissa e o seu líder têm sofrido, nos últimos anos, uma barragem mediática e uma diabolização inauditas. Mélenchon, ex-ministro de um governo do PS, é odiado pelas elites e apresentado como um belzebu vermelho. Mas a França Insubmissa é um exemplo para toda a esquerda europeia. Conseguiu mudar a relação de forças depois da presidência de Hollande, que faliu na sua capitulação liberal. Foi sempre oposição ao neoliberalismo sem as hesitações das terceiras vias. Salvou a esquerda da irrelevância política e eleitoral. Soube reinventar um discurso universalista de esquerda, sem abdicar de nenhuma causa e sem ceder à tentação elitista. Impulsionou, nestas eleições, um processo unitário que se consubstanciou na aliança com PS, PC, Verdes e grupos mais pequenos, que mobilizou o voto dos bairros populares e dos jovens trabalhadores e mereceu o apoio explícito de sindicatos e de organizações de base. Em nome de uma barragem antifascista, Mélenchon foi também o primeiro a anunciar que os candidatos da esquerda desitiriam em favor de quaisquer outros na segunda volta, caso ficassem em terceiro lugar nos círculos uninominais. É assim que se pode vencer o neofascismo.

Depois de abrir o caminho à extrema-direita, Macron quer vetar a esquerda

Perante a vitória da Nova Frente Popular, Macron devia chamá-la a formar governo. Mas desde domingo, o que tem feito são conspirações para evitar reconhecer aquela vitória. Os planos macronistas passaram primeiro por tentar dividir a Nova Frente Popular, procurando seduzir os socialistas e os verdes para se separarem da França Insubmissa, rumo a um acordo com o campo liberal do presidente, contra o qual aqueles partidos concorreram. Essa aliança de um centrão enviesado à direita para continuar a mesma política repudiada nas urnas seria uma traição e um suicídio certo dos partidos que alinhassem na manobra (relembre-se que, no passado, o PS já viu a sua candidata presidencial reduzida a 1,75%, em contraste com os 22% de Mélénchon).

Contra os cantos de sereia dos liberais, todos os partidos da Frente Popular têm mantido grande unidade na afirmação de que o programa que vão aplicar é o que foi submetido a eleições. Macron tenta agora novo golpe. Numa carta dirigida aos franceses nesta quarta-feira, o presidente rejeita o veredicto das urnas ao impor um veto de facto à indicação de um primeiro-ministro pela força mais votada. Ao mesmo tempo, adia o processo de nomeação do governo mantendo no poder o seu primeiro-ministro (Gabriel Attal, humilhado nos votos e que já pedira a demissão) e exige uma aliança “republicana” que implicaria um acordo do macronismo com a direita e a cumplicidade da extrema-direita no Parlamento.

Macron já tinha conseguido a proeza de destruir o centro-esquerda e o centro-direita. Nos seus mandatos, a extrema-direita cresceu sempre. Macron quase entregou o poder a Le Pen e Bardella. Agora, não satisfeito, e contra o critério com que atribuiu, em 2022, a vitória ao seu partido quando estava muito longe da maioria absoluta (tinha 174 deputados, longe dos 289 necessários), alega que “ninguém venceu” estas eleições, para tentar costurar uma aliança da direita e do poder económico. O efeito desta manobra de Macron será só um: rebentar com a confiança na possibilidade de a democracia gerar alternativas. Caso consiga, será mais um favor, depois de tantos outros, ao desespero e à extrema-direita.

A Nova Frente Popular nunca foi a “extrema-esquerda”

O debate público na Europa e em Portugal inclinou-se de tal modo para a direita que os mais insuspeitos jornalistas e comentadores adotam hoje categorias totalmente enviesadas. Na SIC, mais do que um repórter referiu-se à Nova Frente Popular, nestes dias, como sendo a “extrema-esquerda”. Quando Marques Mendes falava, no Jornal da Noite, da “grande notícia” que era a derrota da extrema-direita, cuja vitória teria sido “muito preocupante”, Clara de Sousa retorquiu, enquanto pivô, “acha menos preocupante que a vitória da extrema-esquerda?”. Em França e em Portugal, há quem tenha afirmado hesitar na opção pelo candidato antifascista caso ele fosse da França Insubmissa.

Só a ignorância política ou a falta de cultura programática - ou a outra manipulação - permitem designar a Nova Frente Popular e a França Insubmissa como simétricas da extrema-direita. Não tem qualquer sentido ou rigor histórico, é a mais superficial das topografias. A Nova Frente Popular tem um programa de rutura com o neoliberalismo que prevê medidas imediatas como o aumento do salário mínimo para os 1600 euros, a revogação do aumento da idade de reforma de Macron, o congelamento de preços, para falar apenas das medidas para os primeiros dias que um novo Governo pode fazer por decreto. É um programa forte e é o programa que consegue travar o crescimento da extrema-direita. É política keynesiana, social e ecológica, num tempo de extremismo neoliberal.

Torço para que dê certo

A nova aliança das esquerdas em França leva o nome de uma das mais marcantes experiências de governo do século XX: a Frente Popular de 1936, liderada por Léon Blum, que juntou socialistas, comunistas e o partido radical (um partido republicano, à direita dos outros dois). Foi nesse governo, construído como resposta ao ascenso dos fascismos e sob o impulso e a pressão de um impressionante movimento grevista, que se aumentou os salários em cerca de 12%, se consagrou pela primeira vez o direito a férias pagas (duas semanas), se passou da semana de trabalho das 48 para as 40 horas.

A Nova Frente Popular foi tecida agora, em tempo recorde, com o mesmo espírito antifascista. Para que esta Nova Frente possa fazer pela França o que tantas pessoas aspiram, é preciso que governe, que mantenha a sua preciosa e frágil unidade através de princípios sólidos, foco e humildade no debate, é preciso que ganhe hegemonia e consiga enfraquecer a extrema-direita, é preciso que, nas ruas e na mobilização popular, esse governo encontre o apoio e a pressão para não falhar às aspirações que criou. Torço muito por isso.

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