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Visão | Fausto Bordalo Dias (1948-2024) - O barco vai de partida

Visão | Fausto Bordalo Dias (1948-2024) - O barco vai de partida

Um dos maiores ícones da música portuguesa faleceu no passado dia 1, em Lisboa, aos 75 anos. O JL recorda o percurso e a obra do autor de Por Este Rio Acima

Há mais de uma década que não lançava um disco de originais e eram raras as suas atuações ao vivo. No entanto, a sua morte motivou uma espécie de homenagem consensual. Quando no início do Portugal -Eslovénia o estádio guardou um minuto de silêncio em memória do grande futebolista que foi Manuel Fernandes, o comentador da RTP recordou que o país também estava de luto pela morte de Fausto Bordalo Dias. Foi bonito e sintomático.

Esta admiração por Fausto parece mal correspondia pelo mercado fonográfico. É mais fácil encontrar discos para venda da banda lisboeta Capitão Fausto, do que de Fausto Bordalo Dias.

Mesmo numa plataforma de streaming, como o Spotify, é gritante a carência: são apenas oito os álbuns, é como se não existisse vida antes de por Este Rio Acima e mesmo o seu último álbum de originais, Para lá das Montanhas Azuis, aquele que completa a trilogia dos Lusitana Diáspora, não se pode ouvir.

Aliás, de momento nas lojas online só é possível encomendar Por Este Rio Acima, Grande Grande é a Viagem, Crónicas da Terra Ardente, Para Além das Cordilheiras, A Preto e Branco, além de uma coletânea de canções de amor. Tudo o resto nem por encomenda. Quanto se conseguem ouvir umas quantas canções no YouTube, que uma alma generosa ilegalmente partilhou.

Isto é uma amostra triste daquilo em que se transformou o mercado fonográfico, apesar de nos transmitir a sensação que temos acesso a tudo e mais alguma coisa à borla, mas também do perfil de Fausto Bordalo Dias.

Dos três grandes herdeiros de José Afonso, Fausto sempre foi o mais resguardado e enigmático. Sérgio Godinho tem tido uma carreira consistente e ininterrupta, reinventando-se ao longo dos tempos, recorrendo a músicos mais jovens, atento às mudanças sociais.

José Mário Branco acabou por ter um percurso mais intermitente enquanto autor, sobretudo nas últimas décadas, em que não lançou qualquer álbum de originais depois de Resistir é Vencer (2004), mas nunca deixou de ter um papel fundamental na música portuguesa, enquanto compositor, arranjador e produtor, de nomes como Carlos do Carmo e Camané, entre outros. 

Quanto a Fausto, talvez devido à sua timidez, as suas aparições foram sempre esporádicas, com dois ou três concertos por ano e os discos muito espaçados. Isso fez com que, nas últimas décadas, cada vez que Fausto desse um ar da sua graça, se tornasse um acontecimento. Fausto atingiu uma dimensão mítica, uma espécie de João Gilberto da música portuguesa.

Assim aconteceu quando, em novembro de 2022, se apresentou pela última vez ao vivo. Fisicamente afetado, o músico foi incapaz de uma performance ao seu melhor nível, necessitando de ajuda para interpretar as suas próprias canções, mas ainda assim o público não se arrependeu de comungar aquele momento quase místico. No concerto foi recordado Por Este Rio Acima, o melhor e mais celebrado álbum de Fausto e também um dos mais importantes da música portuguesa.

Não é por acaso que, em 2011, quando, para celebrar 30 anos de existência, o JL pediu a 30 músicos e críticos musicais para indicarem os 30 melhores discos da música portuguesa dos 30 anos anteriores, o mais citado foi Por Este Rio Acima, de Fausto Bordalo Dias (a par de Coisas que Fascinam, dos Mler Ife Dada). É um álbum muitíssimo marcante, que nos fala dos Descobrimentos através dos seus anti-heróis, a Peregrinação de Fernando Mendes Pinto.

Em entrevista de Belino Costa, no JL 48, de 21 de dezembro de 1982, Fausto elucidava: “Enquanto alguns veem no Fernão Mendes Pinto o aventureiro, o pirata, o missionário, o embaixador, eu vejo o fantástico e o maravilhoso”.

Também ao JL, mas em conversa com Baptista Bastos, em 21 de janeiro de 1985, dizia: “Eu nasci no mar, a bordo do paquete, os meus pais iam emigrar para África, cresci em Angola, e digamos que fui embalado, pelo menos durante parte da viagem, por aqueles que, no século XVI, partindo de Portugal, descobriram outros mundos. Direi: não há, propriamente, um interesse pelo século XVI, mas sim a necessidade de saber como se processou essa aventura da viagem e da Descoberta.”

Por Este Rio Acima é um dos álbuns mais cuidadosamente produzidos da música portuguesa, em que as composições de Fausto, baseadas na Peregrinação, ganham arranjos complexos, de dezenas de músicos, e direção musical de Eduardo Paes Mamede (que viria a trabalhar repetidas vezes com Fausto).

Em termos musicais, o álbum concretiza de forma exímia um processo de releitura da música tradicional portuguesa, dando corpo a elementos que já estavam presentes em discos anteriores, nomeadamente, Histórias de Viageiros, uma espécie de esboço ou sinal, em que o universo narrativo já estava presente de forma clara.

Por Este Rio Acima foi, na verdade, a primeira parte de uma trilogia, continuada em Crónicas da Terra Ardente e Para Além das Montanhas Azuis. Mas nenhum deste outros discos teve impacto semelhante.

ALÉM DE POR ESTE RIO ACIMA

Há Fausto além de Por Este Rio Acima. É importante afirmar isso em tempos em que há uma tendência para afunilar e reduzir ideias. Se considerarmos apenas o percurso de Fausto depois de 1982, estamos a esquecer canções fundamentais.

Se o primeiro disco de Fausto, lançado em 1970, não foi sequer editado em CD, provavelmente por o próprio considerar uma experiência de juventude, já os álbuns do período do PREC têm muitos motivos de interesse, além do retrato de época.

Sobretudo Pró que der e vier, que tem canções como “Carta De Paris”, “Não Canto Porque Sonho”, o humor negro de “Flóber” ou o irreverente “O Patrão e Nós”. Sobre este disco, Júlio Pereira, que colaborou de perto com Fausto, comenta na sua página de facebook: “Era fácil… Passámos a adolescência a ouvir James Taylor, Paul Simon, Crosby, Still Nash and Young, entre outros… e o Fausto era o cantautor que melhor dominava a viola. Foi divertido encontrarmos soluções para as duas violas”.

Madrugada dos Trapeiros, de 1977, tem temas absolutamente fulcrais, como Cantiga do Desemprego, Uns vão bem e outros mal, Um Canto para Letrado ou Se Tu Fores ver o Mar (Rosalinda), provavelmente a primeira canção portuguesa de consciência ambiental.

O Despertar dos Alquimistas, com arranjos de Paes Mamede, é uma simbiose entre música erudita e tradicional, em que se faz uma reflexão sobre os despojos de Abril. Mais um álbum conceptual. Aliás, a quase totalidade discografia de Fausto, sobretudo a partir do final dos anos 70, tem a ideia de disco-conceito.

Em Para Além das Cordilheiras, apesar de não incluir na trilogia, Fausto continua a perseguir uma ideia própria de identidade nacional, mas desta vez centrado mais em Portugal e na Europa. E tem grandes temas como Foi Por Ela, que é daqueles que ficou para sempre.

Em A Preto e Branco, Fausto renova e concretiza de forma mais clara a sua influência africana. Inclui a sua versão de Namoro, a partir de poema de Viriato Cruz. Depois foram necessários seis anos para por Crónicas da Terra Ardente, a sequela de Por Este Rio Acima, mas desta vez inspirada na História Trágico-Marítima.

E apenas nove anos depois um novo disco de originais. Fausto surpreendeu com A Ópera Mágica do Cantor Maldito, novamente com uma visão ácida e política sobre a sociedade atual. É neste disco que ele canta: “Materialista sou eu, mas dialético porém”

Finalmente, em 2012, Fausto lança o seu derradeiro álbum, Em Busca das Montanhas Azuis, a conclusão da trilogia, desta vez inspirando-se nas crónicas dos exploradores portugueses em África.

Pelo caminho, em 2009, Fausto juntou-se a Sérgio Godinho e José Mário Branco, para o espetáculo, também editado em disco e DVD, Três Cantos. Um momento histórico de reencontro de três ícones sagrados da música portuguesa.

O que há de tão especial e único no Fausto é o facto de ele ter criado um estilo pessoalíssimo, uma estética inspirada na música de raiz portuguesa, nos ritmos e até instrumentação própria, acrescentando a modernidade da sua forma de tocar a guitarra acústica, também ela pessoal e quase intransmissível

sérgio godinho

Sérgio Godinho, na sua página de Facebook, reagiu assim à morte do amigo: “O que há de tão especial e único no Fausto (‘notável’, como ele gostava de dizer), é o facto de ele ter criado um estilo pessoalíssimo, uma estética inspirada na música de raiz portuguesa, nos ritmos e até instrumentação própria, acrescentando a modernidade da sua forma de tocar a guitarra acústica, também ela pessoal e quase intransmissível. Cimentou esta estética nessa obra-prima chamada Por este rio acima, que está e estará sempre em lugar de honra na história da música portuguesa. Qualquer música.”

E continua: “De certo modo, ironicamente, o Fausto foi sempre seguindo (e perseguindo) a cartilha que ele próprio criou, com regras estritas e rigorosas, a que pouco fugia. Talvez a aventura dos ‘Três Cantos’ tenha sido um pouco a exceção, porque entrecruzou três universos, e porque teve a batuta do Zé Mário Branco a dar-lhe uma unidade comum e particular. Um momento único para os três, de muito boa memória.”

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