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Visão | "Cada vez que olharmos para uma tela do Cargaleiro, pensamos que ele ainda fala connosco"

Visão | "Cada vez que olharmos para uma tela do Cargaleiro, pensamos que ele ainda fala connosco"

O Mestre da "pintura solar" morreu, aos 97 anos, deixando uma vasta obra na área da pintura e da cerâmica. O JL revê o percurso pessoal e artístico de Manuel Cargaleiro

Dono de uma vida “dedicada à glorificação da arte da cerâmica”, nas palavras de Álvaro Siza Vieira, Manuel Cargaleiro morreu aos 97 anos, no passado dia 30 de junho. Teve uma produção vasta e diversificada da pintura à cerâmica, azulejaria e tapeçaria, procurou sempre aquilo que o jornalista e escritor Fernando Paulouro Neves define como “a transparência da luz”, imprimindo-a numa “pintura solar”, era apaixonado pelas cores e sabores da sua Beira Baixa natal, amava as matizes do Tejo e produziu até ao fim.

“Quando o visitava em casa, em Lisboa, tinha sempre o cavalete na sala e ia pintando”, recorda Paulouro Neves, amigo próximo de Manuel Cargaleiro desde 1973, ano em que o Jornal do Fundão, de que era então diretor, fez uma homenagem nacional ao Mestre.

Em estações de metro, igrejas, paredes de museus, galerias de arte e edifícios públicos, as obras de Cargaleiro são criações de cores e luz, reflexo da personalidade alegre com que todos parecem recordá-lo.

Se o historiador de arte Michel Bohbot enalteceu “a humildade, a curiosidade em relação ao mundo, uma grande força de trabalho e uma alegria de viver sem limites” do Mestre, Álvaro Siza Vieira descreveu-o como “a pessoa mais incapaz de maldade”, com os olhos “focados para o que há de bom nos outros e na vida”, com uma visão do mundo “luminosa”.

Também Paulouro Neves enfatiza o lado “luminoso” do mestre, nascido a 16 de março de 1927 em Chão das Servas, Vila Velha de Ródão, no distrito de Castelo Branco. “Na pintura dele há uma coisa fundamental, com um sentido poético muito forte, que é a transparência da luz que ele dá às coisas. Penso que bebeu muito da luz e das matizes da sua terra, à beira do Tejo, as quais levou para a pintura e nunca deixou”.

Chão das Servas, onde tudo começa

A Chão das Servas Cargaleiro haveria de voltar apenas para passar férias, já que, a partir de 1928, a família muda-se para a Caparica. Porém, “o lugar inicial foi determinante na sua pintura”, assegura Fernando Paulouro Neves. “Falei muito com ele sobre isso e, de facto, tem quadros fabulosos sobre a Beira Baixa, as suas cores, as flores, os jardins”.

É também na aldeia beirã que nasce, segundo a biografia estabelecida por Sonia Loeb, “o gosto pela olaria pelos barros, pela cerâmica”. A “beleza simples das formas e decorações dos potes, bilhas, travessas e objetos populares utilizados para ir buscar água” fascina-o e, aos 18 anos, faz as suas primeiras experiências no campo da modelação de barro, na olaria de José Trindade, no Monte da Caparica. “Ele dizia muitas vezes que era ceramista e pintor e que as duas coisas se confundiam. A cerâmica foi de facto uma grande paixão”, conta Paulouro Neves.

Em 1949, ingressou na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa e participou na Primeira Exposição Anual de Cerâmica, no Palácio Foz, em Lisboa, onde realizou igualmente a sua primeira exposição individual de cerâmica, em 1952.

1954 foi um ano marcante na carreira artística de Manuel Cargaleiro: com apenas 27 anos recebeu o Prémio Nacional de Cerâmica Sebastião de Almeida, iniciou a lecionar Cerâmica na Escola de Artes Decorativas António Arroio e apresentou as primeiras pinturas a óleo no Primeiro Salão de Arte Abstracta, na Galeria de Março, em Lisboa.

Foi precisamente nesse Salão que conheceu Maria Helena Vieira da Silva e Apard Szenès, de visita a Portugal para verem a exposição. Imediatamente seduzido pelo seu talento e personalidade, o casal de artistas deu início a uma longa e fiel amizade com Manuel Cargaleiro.

“Nasci como pintor em Paris”

Dois anos mais tarde Vieira da Silva haveria de pedir-lhe que acompanhasse o seu amigo galerista Edouard Loeb numa viagem à descoberta de Portugal. Os dois simpatizam um com o outro e Loeb convence Cargaleiro a mudar-se para Paris, ajudando-o a encontrar um pequeno atelier a poucos metros daquele onde Picasso tinha pintado Guernica.

É também Edouard Loeb quem o convida para vernissages e soirées onde o Mestre acaba por travar amizade com artistas como Max Ernst ou Nathalie Gontcharova e Larinov, “inventores” do rayonnisme. Mais tarde dirá “nasci como pintor em Paris”.

Nas décadas de 1960 e 1970, participa em inúmeras exposições individuais e coletivas um pouco por todo o mundo, da Suíça ao Brasil, passando por França, Portugal, Japão, Alemanha, Itália, Angola e Moçambique, afirmando-se não apenas como um conceituado ceramista, mas também como um notável desenhador e pintor.

O pleno reconhecimento, nacional e internacional chega na década de 1980. Às exposições soma a ilustração de poemas e de livros, realiza painéis de azulejos para edifícios públicos e estações de metro, integra o painel de jurados de diversos concursos artísticos, é agraciado com numerosas distinções e ordens de mérito nacionais e internacionais e são publicados livros sobre a sua vida e obra.

A 31 de janeiro de 1990, cria a Fundação Manuel Cargaleiro a fim de garantir o acesso e fruição por parte do público às obras que criou e colecionou ao longo da vida.

O legado

Em 2005 nasce enfim o Museu Cargaleiro, “desejo que a Fundação tinha desde o início”, revela Paulouro Neves, antigo membro dos corpos sociais da mesma. “É importante visitar aquele museu, um trabalho cultural notável, para se perceber aquilo que foi o seu percurso criador, sempre a romper caminhos novos”.

De entre os vários prémios e distinções que recebeu ao longo da sua carreira, o JL destaca os mais recentes: a 16 de março de 2017, a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, atribuída pelo Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa e, no dia 1 de setembro desse ano, em Itália, o título de Magister di Civiltà Amalfitana.

No próximo número, o JL dedicará mais espaço à vida e obra do Mestre Cargaleiro, através de um texto do jornalista e amigo Fernando Paulouro Neves, que nos assegurou: “cada vez que olharmos para uma tela do Cargaleiro, pensamos que ele ainda fala connosco. É isso que acontece com os grandes criadores”.

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