visao.ptsvicente - 10 jul. 18:00

Visão | Entrevista, qual entrevista?

Visão | Entrevista, qual entrevista?

Ainda bem que a senhora procuradora não deu entrevistas durante estes anos todos. Só temos de estar muito preocupados mais três meses

Não acredito que exista qualquer objetivo político-partidário nas ações do Ministério Público (MP) que, de uma forma clara, interfiram ou pretendam condicionar o poder político sem justificação legal. Como também não considero que os ataques a direitos, liberdades e garantias, que se vão repetindo sem aparente razão, sejam movidos por um qualquer objetivo ideológico.

Não é de agora que penso que uma parte importante e hegemónica dos incorretamente chamados magistrados do MP tem sim uma visão messiânica da sua ação e mostra um enorme desconhecimento da realidade social, política e empresarial e de como estes fenómenos se relacionam. Vive numa bolha em que dentro estão os bons e os justos, os que vão salvar Portugal e o mundo, enquanto cá fora há um conjunto de bandidos ‒ os políticos, os ricos, os poderosos, que maleficamente tudo dominam e que têm de ser postos na ordem de qualquer maneira.

Assim, não fiquei particularmente surpreendido quando a procuradora-geral da República disse na entrevista, que deu na passada segunda-feira, que havia uma campanha orquestrada contra (reforço o “contra”) o MP, ou seja, quem nestes anos todos tem protestado contra os vários erros, os atropelos aos mais básicos direitos e quem se revolta com os julgamentos na praça ou fala contra o abuso das escutas e outros fenómenos similares não está preocupado com o irregular funcionamento da instituição MP. Está, isso sim, a orquestrar a tal campanha, da qual até a ministra da Justiça fará parte.

A propósito, não havia grande razão para tantas reclamações acerca do silêncio da senhora procuradora. Não me parece que, vistas as coisas, valha sequer a pena ir ao Parlamento. Tudo o que disse, tudo o que defendeu, tem sido repetido à saciedade pelos representantes do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público.

Que a senhora procuradora não sabe tudo sobre todos os casos não surpreende. Mas, convenhamos, é muito preocupante que não soubesse rigorosamente tudo sobre a Operação Influencer.

Bem sei que Lucília Gago não se deve preocupar com as consequências dos seus atos (foi a própria que disse) e que a lei é igual para todos, mas talvez fosse avisado tentar perceber que um primeiro-ministro em democracia é eleito pelo povo e que isso basta para haver um especial cuidado quando se tornam públicas suspeitas de especial gravidade.

Lá está, compreende-se que na bolha da Rua da Escola Politécnica seja normal pensar-se que não é necessário estar-se muito seguro quando se grita aos quatro ventos que o mais alto responsável político é suspeito de crimes graves. Mas o mundo real funciona de outra forma.

Também se consegue perceber que quando se tem magistrados tão experientes e tão competentes como os que dirigem a Operação Influencer se ache que não há necessidade de se saber todos os pormenores do processo. Contudo, seria avisado que num caso que levou diretamente à queda de um Governo, a novas eleições e a uma nova realidade político-partidária, a máxima responsável pela ação penal soubesse exatamente todos os pormenores da situação.

Bom, estamos perante alguém que pensa que ouvir um governante durante quatro anos “não é desejável”, mas, lá está, podem ir aparecendo coisas. Tudo dito.

Acredito, e longe de ser de agora, que há setores importantes do MP que têm uma visão instrumental do segredo de justiça. Não faltam exemplos de pessoas condenadas no pelourinho de um qualquer tabloide através da fuga de uma escuta ou de outra parte de um processo e que são absolvidas ou mesmo nunca acusadas. Lembro e resumo um célebre despacho de arquivamento: não há provas contra o arguido, mas ele é culpado.

O que a Operação Influencer trouxe foi uma espécie de confirmação expressa dessa visão.

Sendo o segredo de justiça justificado para que não haja perturbação da investigação, mas, tão importante como isso, também se proteja o bom nome e a presunção de inocência dos investigados, o que o MP fez com o célebre parágrafo foi subverter o princípio. Anunciando a suspeita, a senhora procuradora violou deliberadamente o segredo de justiça. O pior é que o fez não por qualquer interesse superior, mas apenas para se proteger a si própria, ou seja, violou-se o segredo de justiça para a dra. Lucília Gago se proteger da fuga do segredo de justiça. O Presidente da República falou em maquiavelismo a respeito de algumas ações da PGR, talvez não tenha exagerado.

Não fosse o já histórico parágrafo suficiente, a senhora procuradora anunciou outro com toda a naturalidade, desta vez de forma oral ‒ há de facto muitas formas de se violar o segredo de justiça. Pelos vistos, as investigações a António Costa continuam, ou seja, o ex-primeiro-ministro ainda está a ser investigado, reforçando o contingente dos eternos suspeitos, traço já característico do nosso sistema penal.

No fundo, ainda bem que a senhora procuradora não deu entrevistas durante estes anos todos. Só temos de estar muito preocupados mais três meses.

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Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

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