rr.sapo.ptOpinião de José Miguel Sardica - 10 jul. 09:32

​O dilúvio e a placidez

​O dilúvio e a placidez

A placidez previsível dos que infelizmente nos deixaram após o Brexit contrasta, assim, com o dilúvio imprevisível dos que nos oferecem o jacobinismo redivivo ou o “Frexit” futuro. De Dover a Calais, o Canal da Mancha não só já não une, como separa cada vez mais.

As mais recentes eleições legislativas em duas das maiores potências do continente europeu - França e Reino Unido - tiveram resultados na aparência semelhantes, mas na verdade profundamente distintos. Paris e Londres viraram ambas à esquerda. Contudo, as esquerdas vencedoras em França e no Reino Unido, os restantes parceiros políticos derrotados e, sobretudo, a “cultura” que rodeou cada um dos dois atos eleitorais foi muito diferente.

A França está insubmissa há muito tempo, à medida que a presidência centrista de Macron vinha revelando a sua inoperacionalidade. O centro é a geometria vazia de um “não lugar” quando as sociedades se tribalizam e radicalizam, como a francesa, onde o revolucionarismo, e não o reformismo, foi sempre marca genética. Em 2017, Macron foi a barragem erguida por velhos ou inventados partidos que coalesceram em seu torno a fim de impedirem Marine Le Pen de alcançar o Palácio do Eliseu. Agora, a Nova Frente Popular das esquerdas - uma geringonça que mais parece um saco de gatos - foi o dique erguido à pressa para impedir que Jordan Bardella (o factótum de Le Pen) alcançasse o Palácio de Matignon. A democracia falou pela “voz” do voto; mas o RN ultra direitista não desapareceu (bem pelo contrário), e as esquerdas vencedoras mostram ter divisões internas insanáveis, a principal das quais entenderem-se para a propositura de um novo chefe de governo, algures entre Jean-Luc Mélenchon, que quer todo o poder para os seus “sovietes”, e François Hollande, que talvez não enjeite voltar ao poder, para dali moderar a Frente Popular e coabitar com quem correu com ele do Eliseu. O resultado eleitoral foi numericamente claro, mas a situação política que ele criou em França é uma obscuridade. Macron achou que, com eleições antecipadas, o RN talvez vencesse e se normalizasse; ou haveria um governo ao centro reconduzido, com os votos da esquerda, que votaria nos “macronistas” como o PCP votou em Mário Soares para derrotar Freitas do Amaral. Teve uma dupla derrota: abriu as comportas de uma barragem que pode inundar a França com uma guerra verbal, política e de rua. E ele, Macron, ficará mais quase três anos no Eliseu, não como um “pato coxo” (“lame duck”, na gíria política americana), mas como um monarca politicamente moribundo, arriscando ver Paris a arder enquanto murmura, melancólico, o dito atribuído a Luís XV: “Depois de mim, o dilúvio”.

Em contraste, as eleições britânicas confirmaram os pergaminhos da normalidade democrática de um Reino Unido que faz muita falta - política, económica, geoestratégica, diplomática, militar - à União Europeia. O pêndulo do tradicional rotativismo girou, e um renovado centro-esquerda trabalhista, curado da deriva radical de Jeremy Corbyn, e bem situado, nas mãos de Sir Keir Starmer, como pilar liberal, institucionalista e capitalista da velha monarquia inglesa, sucedeu a um desgastadíssimo centro-direita conservador, no poder há quase uma década e meia. Ao centro, os Liberais-Democratas também elegeram uma boa bancada e na extrema-direita o aventureirismo de Nigel Farage é muito minoritário – e depressa o dito se vai cansar das (boas) minudências regimentais de Westminster. E tudo se passou na boa paz do Senhor. Os Tories fizeram o seu “mea culpa” e preparam-se para uma reaprendizagem na oposição, em pose contrita e humilde, enquanto o Labour celebrou a vitória sem jactâncias provocatórias. A placidez previsível dos que infelizmente nos deixaram após o Brexit contrasta, assim, com o dilúvio imprevisível dos que nos oferecem o jacobinismo redivivo ou o “Frexit” futuro. De Dover a Calais, o Canal da Mancha não só já não une, como separa cada vez mais insulares e continentais.

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