www.sabado.ptDavid Erlich - 10 jul. 08:22

Listas: a ditadura da antiguidade

Listas: a ditadura da antiguidade

Opinião de David Erlich

Hoje, provavelmente, serão publicadas as listas de colocação de professores no concurso interno, mediante o qual os que já pertencem à carreira são alocados às vagas permanentes disponíveis. Este concurso tem um triplo legado da anterior governação socialista:

1) participam 5606 docentes da primeira Vinculação Dinâmica, que em 2023 permitiu integrar na carreira quase o quádruplo da média anual 2004-2022, naquele que foi o maior combate à precariedade docente do século XXI em Portugal;

2) este concurso baseia-se numa divisão territorial em 63 Quadros de Zona Pedagógica (QZP), cujas distâncias internas máximas são de 50km, frente aos 200km que antes vigoravam, permitindo aos professores vinculados em QZP despender menos tempo em deslocações e ganhar segurança no desenho dos seus projetos de vida;

3) consubstancia-se neste concurso uma histórica abertura de 20 853 vagas em Quadros de Escola (QE), 7077 das quais são para ingresso na carreira e 13 776 para transições de QZP para QE.  

Mas o ciclo concursal deste verão também é aquele em que um legado outrora anunciado nos ensombra agora pela sua ausência.

Dizia João Costa no início do ano letivo passado: "quero discutir com as organizações sindicais a possibilidade das escolas terem uma percentagem de professores escolhidos de acordo com um perfil de competências específico". Afirmou então, em declarações à Lusa: "quero começar por um terço".  

Em janeiro de 2023, a ideia já é mais específica: numa peça do Expresso, reporta-se que, por um lado, "o ministro garante que a graduação nacional continuará a ser o único critério de seleção dos professores para efeitos de contratação e vinculação" mas, por outro, "que a afetação dos docentes dos QZP às escolas que pertençam a essa região serão feitas pelos diretores das escolas".

O fundamento desta medida seria, por um lado, incrementar a estabilidade das equipas educativas e, por outro, assegurar uma adequação do perfil de competências do docente ao projeto educativo. Se a escola tem um projeto de Yoga, porque não poder escolher um professor de Educação Física com formação comprovada na área?

Tratava-se de uma medida equilibrada: a graduação profissional continuava a ser o critério de vinculação; mas, para efeitos de alocação a uma escola de um docente já vinculado a um QZP, a realidade das comunidades educativas passava a ser relevante.

Sabes, caro leitor, o que sobrou desta ideia? Nada. O seu desaparecimento foi uma das cedências ao conservadorismo sindical.

A graduação profissional é um valor numérico: a nota da classificação académica acrescida de um ponto por ano de serviço. Por exemplo, se alguém acaba o Mestrado em Ensino com 17 valores, essa será a sua graduação profissional de partida. Quando tiver completado um ano de serviço, terá 18 como graduação profissional. E por aí fora… no concurso de professores apenas importa, uma vez terminada a universidade, deixar o tempo passar.

Suprimir completamente a antiguidade é o que o capitalismo desenfreado sempre imprime à sua volta, enquanto dissolução neoliberal da memória comunitária sob o jugo da voraz monetização. Mas uma estrutura simétrica de sinal oposto, em que só a antiguidade conta, ignora as especificidades das comunidades escolares e a dimensão intrinsecamente pessoal e societal que caracteriza os processos de aprendizagem.

Por agora, vigora ainda a ditadura da antiguidade.

Fá-lo num estranho paradoxo: quando um ministro socialista quis conferir alguma autonomia contratual às escolas, ficou a falar sozinho; passado pouco mais de um ano, a medida desapareceu do programa do PS e consta nos da AD e da IL.

Os sindicatos, esses, vão gritando vitória – uma vitória que, muitas vezes, é a favor dos direitos dos professores, mas, outras, se constitui como um travão a qualquer intento de modernizar processos e dar mais autonomia às escolas.

Por agora – reitero – vigora ainda a ditadura da antiguidade. Na autocracia do tempo que se arrasta, o potencial de cada professor para trabalhar numa escola nada mais é do que um número num Excel.

Eis outro paradoxo: numa das mais pessoais funções, aplicar o mais impessoal dos processos.

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