rr.sapo.ptOpinião de Alfredo Teixeira - 9 jul. 07:35

O sociodrama desportivo

O sociodrama desportivo

O campo desportivo foi sempre portador de alguns dos mais salientes valores modernos. No século XIX, descobrimos uma particular aliança entre desporto e moral - a performance desportiva foi pensada como uma via de musculação moral do indivíduo.

Nas últimas semanas, as transmissões em direto de competições de futebol constituíram, nas diferentes médiaesferas, uma quase «liturgia das horas» - tempos fortes de transcendência desportiva, segundo uma métrica quase diária, que incrementam uma enorme vaga de energia emocional coletiva. A sucessão de transmissões do jogo-espetáculo ofereceu-se como um sociodrama trágico, com os seus heróis, no sucesso e no fracasso, e com os coros de comentadores, construindo uma narrativa que diz muito das mitologias que tecem os nossos imaginários.

Nos últimos anos, tenho coordenado, na Universidade Católica Portuguesa, a «Cátedra Manuel Sérgio - Desporto, Ética e Transcendência», oportunidade favorável ao aprofundamento dessa original filosofia do desporto que Manuel Sérgio, do alto dos seus 91 anos, nos continua a oferecer. Os últimos dias foram uma ocasião oportuna para regressar à leitura de um texto de Manuel Sérgio, «Filosofia do Futebol», publicado, pela primeira vez, em 2009, reeditado em 2023, com o patrocínio da Federação Portuguesa de Futebol. Nas vias que o livro abre, encontramos uma das suas mais vulgarizadas afirmações, «não há jogos, há pessoas que jogam», rasto de uma ampla visão humanista do desporto.

O campo desportivo foi sempre portador de alguns dos mais salientes valores modernos. No século XIX, descobrimos uma particular aliança entre desporto e moral – a performance desportiva foi pensada como uma via de musculação moral do indivíduo. Nos itinerários históricos mais recentes, o corpo atlético, de alto rendimento, tornou-se metáfora da superação de si e lugar de sacralização dos quase ilimitados recursos tecnocientíficos – basta comparar o corpo do jovem futebolista Ronaldo, quando estava a competir em Portugal, com o corpo tecnicamente produzido, uns anos mais tarde, em ligas mais competitivas.

Na nossa experiência contemporânea, aprofundou-se a ideia de performance desportiva como «superação de si» e como «realização de si», num contexto em que ética, espiritualidade e técnica conhecem combinações inéditas. Este desporto de alto rendimento tem uma particular relação com a experiência do humano inacabado. Este contexto torna necessário continuar a pensar o desporto enquanto manifestação humanista e expressão de um modo de habitar o mundo, onde vulnerabilidade e superação, competição e cooperação se implicam.

Ainda antes da formulação da sua tese sobre a motricidade humana, Manuel Sérgio, em 1976, na editora Seara Nova, publicava «Desporto e Democracia», uma obra que respirava o espírito do tempo. O seu prefaciador, Baptista-Bastos, é incisivo na apresentação: «O título do livro é uma escolha, a imagem preferencial da reflexão feita sobre o desporto entendido como cultura – e em democracia». No quadro de uma teoria crítica da modernidade, Manuel Sérgio, pensava as dimensões míticas do desporto, criticando o que nele possa ser alienação ou unidimensionalidade. Para superar esta situação, o desporto precisava de se humanizar: «O desporto surge, nos dias que passam, como uma das formas sóciohistóricas do vasto movimento humanista».

A voz desassombrada de Manuel Sérgio dá voz à crítica da razão desportiva – quando esta se aliena na simples produção de corpos rentáveis, na perpetuação de antagonismos tribais e passa a ser, preponderantemente, reflexo das dinâmicas de mercado ou dos poderes em exercício. O filósofo nunca desistiu da energia utópica do desporto: «é preciso, imperioso e urgente que o desporto acorde do seu sono de “instalação”, numa sociedade em que não passa de “reflexo”, e não sabe ser “projeto”». Nesta perspetiva, Manuel Sérgio convida a uma compreensão do corpo-sujeito do atleta como lugar de resistência, de inconformidade, e não apenas reflexo de estruturas sociais ou objeto de disciplina.

Situando a prática desportiva no plano da motricidade humana, enquanto movimento intencional e solidário de transcendência, toma posição frontal contra o individualismo e o narcisismo que superabundam no espetáculo desportivo: «aos imperativos totalitários do dinheiro, sem quaisquer outros valores, contrapomos aqueles valores que nos permitem aliar a ciência à consciência, a competição à cooperação, contra as idolatrias do consumo e do indiferentismo pelo sofrimento alheio». Esta visão do desporto como promessa, como «ca(u)sa comum», dá corpo a um humanismo muito próximo da voz do Papa Francisco, na encíclica «Fratelli Tutti»: «Se não conseguirmos recuperar a paixão compartilhada por uma comunidade de pertença e solidariedade, à qual saibamos destinar tempo, esforço e bens, desabará ruinosamente a ilusão global que nos engana e deixará muitos à mercê da náusea e do vazio […]. O princípio “salve-se quem puder” traduzir-se-á rapidamente no lema “todos contra todos”».

Em diversos contextos nacionais e regionais, encontramos desportos que têm uma grande capacidade para representar sentimentos coletivos. Nessa condição, podem ser laboratórios para a adesão a valores necessários à construção da «ca(u)sa comum», em vez de guetos de antagonismo. Basta recordar como Nelson Mandela se serviu do potencial agregador do râguebi, na África do Sul, para a construção de uma sociedade democrática inter-racial, superando, pela reconciliação, um passado de conflito e ressentimento. A interpretação destas vias de superação está no cerne da filosofia de Manuel Sérgio: «no âmbito dominantemente ético do futebol, importa que, no treino, na competição e na justiça desportiva, se criem ações instituintes da vitória, simultaneamente sobre o adversário e sobre nós mesmos». No cruzamento entre o culto da performance e a sociedade do espetáculo, a alta competição desportiva pode ser lida como ritualização ou teatralização de um modo de civilização, a civilização da competição tecnocrática. Em alternativa, Manuel Sérgio convida à revalorização da conduta desportiva, na sua natureza festiva e na sua estrutura cooperativa. Esse é, também, o desporto que podemos ser.

Alfredo Teixeira, antropólogo

NewsItem [
pubDate=2024-07-09 08:35:36.0
, url=https://rr.sapo.pt/artigo/convidado/2024/07/09/o-sociodrama-desportivo/385540/
, host=rr.sapo.pt
, wordCount=887
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2024_07_09_394165664_o-sociodrama-desportivo
, topics=[opinião, convidado]
, sections=[opiniao]
, score=0.000000]