expresso.ptAgostinho Lopes - 9 jul. 07:45

O debate e os candidatos à presidência dos EUA - "os sinos dobram por nós"

O debate e os candidatos à presidência dos EUA - "os sinos dobram por nós"

O debate para os nossos comentadores foi algo impensável, impossível, inimaginável e mesmo, ou sobretudo, inexplicável

É notável o que se escreveu (1) a propósito do debate entre os candidatos à Presidência dos EUA, denominados por alguns de “maior democracia do mundo”.

“É sintoma de decadência da democracia americana um embate entre o sociopata Trump e um Biden com neurónios aposentados” (MJM).

“Se fosse num filme, o debate entre Trump e Biden seria uma hipérbole da crise das democracia ocidentais. Uma caricatura ficcional. Mas o filme de terror é real. De um lado temos Trump a ser Trump: um pirómano e mentiroso compulsivo. (…) Só que o debate mostrou que Biden é um candidato pior do que um cartoon da Disney. . Assim a racionalização do sucedido, a compreensão do acontecimento, a explicação de como os EUA, a sua sociedade, o seu capitalismo, a sua democracia chegou onde chegou, ficou sem qualquer resposta e toda a prosa (e foi muita) expendida sobre o debate traduziu-se em adjectivação mais ou menos agressiva, e zero em matéria de argumentação substantiva.

Para JPTF, e é dos poucos a fazer um esforço explicativo, a razão é que “vivemos tempos estranhos”, e é “extraordinário como um Estado que nos habituamos a ver como um modelo de democracia liberal tem, de novo, um candidato presidencial como Donald Trump.” Serão de facto os tempos anormais, esquisitos, fora da história, ou uma anormalidade o aparecimento de Trump, Bolsonaro, Milei, Meloni, Le Pen, etc.? Mas JPTF procura justificar a estranheza dos tempos, e o facto do aparecimento de ovnis políticos com a “A enfermidade populista da democracia americana”. O populismo tudo explica sem nada explicar: “Não é por acaso que a política norte-americana é, nesta altura, a mais intoxicada no Ocidente pela lógica populista. Nela emergiu uma estranha e imprevista (lá está a estranheza e a imprevisibilidade) ligação entre tecnologia, informação, entretenimento, obsessão pela novidade e pelas audiências e política. Emergiu gradualmente a partir das últimas décadas do século XX, mas, neste primeiro quartel do século XXI, adquiriu uma dimensão que a torna cada vez mais intoxicante da democracia liberal. Tal como a maioria da geração mais recente de populistas, Donald Trump é um resultado dessa combinação. Nesse sentido, o seu populismo está indissociavelmente ligado ao actual “american way of life” e à sociedade em rede.” Mas que sentido é que isto faz? E então o Biden, e tudo o resto? O que explica a nascença e a manutenção dessa “combinação tóxica”! O que explica “as grandes transformações demográficas, culturais e de valores das últimas décadas – que acentuaram as diferenças entre as grandes cidades e Estados da federação das costas Leste e do Oeste face ao resto do país – até às políticas de identidades que dividiram a sociedade, passando pelos efeitos negativos e pelas desigualdades criadas pela globalização.” Como o capitalismo mais avançado e o “modelo de democracia liberal” apodreceu a sociedade americana, degradou a democracia e produziu esses mostrengos, JPTF não o diz.

Outros articulistas são bastante mais directos nas suas canhestras explicações. É a existência do malvado do Trump, e nada a dizer quando aparecem seres deste calibre! Aparecem, brotam, surgem, talvez por geração espontânea! E então este com uma grande apetência de poder e vontade de vingança, JPP dixit (2). Mas não está só: para TS, “O anterior Presidente (Trump) sonha com a vingança contra todos os que, dentro ou fora do seu país, lhe fizeram frente – é este o seu principal objectivo, para além da possibilidade de perdoar-se a si próprio pelos crimes que cometeu.” E MST compartilha: “os Estados Unidos da América, a “nação indispensável”, o país mais poderoso e venturoso do mundo prestes a entregar-se nas mãos de um político inqualificável: ignorante entre os ignorantes, ego demente, boçal, mentiroso compulsivo, cego de ódio e desejo de vingança.” (arre, que catilinária!!!)

Mas é evidente que Trump não está sozinho nesta marosca para dar cabo da “nação indispensável”. Não se esqueçam de Putin com ou sem conspiração universal! CFA explica: Trump não é dono de Trump. Quem é? Um sistema difuso de alianças geoestratégicas e táticas entre os poderes planetários (quem são?), e na América entre o dinheiro de Wall Street, as indústrias dos recursos naturais, do petróleo, das comunicações e das armas, e a sagração da IA (põe o dedo na ferida). A ideologia libertária de um Musk, um Peter Thiel, um Bezos, ou um Zuckerberg, dos grupos Meta, Apple, Amazon, Microsoft ou Alphabet (outra vez o dedo na ferida), os gigantes mais visíveis, é uma: continuar as experimentações avançadas sem taxação ou perturbação por estados ou entidades.” Mas não só, e estraga o que disse: Trump é “A marioneta, que ditadores estrangeiros podem manipular através dos agentes de influência espalhados na matrix e no planeta. Putin tem a mão longa (Salazar falava sempre no dedo de Moscovo!), está em toda a parte (é Deus! ) A China (já cá faltava!) tem a mão invisível (é o mercado!). Não são os únicos. O jogo é universal. Neste mundo que nasce a toda a velocidade, que inebria e anestesia, a imagem de um velho titubeante seria intolerável.” Para quem? Logo, malandros, sabotaram o debate do Biden para o pôr fora da carroça... Isto “Não é apenas fumaça”, diz CF, a propósito do orgulho de Banon (ex-director de campanha de Trump) de ser um “preso político” no processo do assalto ao Capitólio: “Os populismos extremistas alimentam-se assim e a repetição de narrativas desta natureza, um pouco por todo o Ocidente, revela que as mesmas não são fruto do acaso. Ou seja, existe uma estratégia pensada à escala global de subversão do Estado de direito que visa capturá-lo. As mensagens da União Nacional, em França, da União Cívica, na Hungria, ou do Chega, em Portugal (e podia acrescentar o Trump, Bolsonaro e etc.), embora com matizes diferentes apontam todas na mesma direcção: apelam ao nacionalismo, agitando os problemas da imigração, pretendem fragmentar a União Europeia e fomentam a insegurança.” Atenção “Ocidente”, cuidado com a conspiração populista, certamente apadrinhada por russos e chineses...

Para MST, a responsabilidade cabe toda às redes sociais – ideia que CFA partilha, mas de forma não tão absoluta – que construiu um mundo de “ressabiados”. “Desde as aventuras da Cambridge Analytica na manipulação de vontades e votos no “Brexit”, na eleição de Trump ou na de Bolsonaro, aprendemos que o célebre algoritmo se tornou no instrumento perfeito para a formação e manipulação das opiniões públicas, seleccionando sabiamente a informação recebida pelos utentes de acordo com a vontade do Big Brother, assim canalizando as suas opiniões para o sentido pretendido.” E discorre, “Assim quem viu o debate entre Trump e a sombra de Joe Biden (…) viu o que seria inimaginável de ver em qualquer democracia. Esteve ali, indecorosamente exposto, tudo aquilo que eu considero o resultado fatal da derrota de um mundo minimamente decente, com valores e pudores minimamente aceitáveis, face à libertinagem moral e cívica da gente das redes sociais.” Não se compreende: as redes sociais (que têm a responsabilidade de muita coisa) são responsáveis pelo estado mental de Biden? Pela sua indigitação/aceitação pelo Partido Democrata? Por não conseguirem substituí-lo? E as mesmas interrogações, com as devidas adaptações, aplicam-se a Trump.

MM mergulha, como sabemos, semanalmente no Expresso na grande geoestratégia. “Vivemos um período de transição do sistema internacional.” (É um facto.) Ora “O verdadeiro significado histórico de Donald Trump é o facto de ele questionar os benefícios para os EUA da “Pax Atlantica” que será assinalada na próxima semana na cimeira da NATO em Washington. Para Trump e muitos americanos à direita e à esquerda, a China é o mais importante rival estratégico dos EUA. A atual Administração concorda, mas vê na Ucrânia e na Pax Atlantica a melhor forma de comunicar estrategicamente (??? O que é isto?) com Pequim. A dificuldade é que Joe Biden terá de provar nas próximas semanas e meses que conseguirá fazer uma campanha competente (Como MM?), ganhar as eleições a Trump e ser Presidente até 2028. Como se regista, para MM as diferenças Trump/Biden não são muitas... e tem razão. E qual é a explicação de MM para a situação que vivemos? “Na realidade, o processo de adaptação norte-americano e dos países do Velho Continente aos factos políticos internos e externos promete ser muito mais difícil do que pensamos.” E que factos são esses MM? E qual a razão das dificuldades? MM não esclarece.

Afinal restou MJM para se aproximar de qualquer coisa que desvendasse o confuso quadro do debate. Mesmo assim ficou a meio do caminho. “Porém aquele debate e aqueles dois candidatos levantam questões mais fundas do que a capacidade de Biden. Ou quem afinal toma decisões atualmente na Casa Branca (Biden não é certamente) (…) As questões são mais fundas e dilacerantes. Há uns anos escrevi nesta página sobre a crise da velha democracia americana. As instituições desenhadas para o fim do século XVIII, então visionárias e disruptivas, falham para o século XXI. A constituição americana depende mais dos incumbentes do que das instituições na hora de limitar o poder de um protoditador. (…) Talvez esta dupla subdotada seja um sinal do declínio e queda do império americano”. E qual a razão para o declínio e queda? MJM nada acrescenta… não sei se não remeterá para o declínio e queda do império romano, ou de que os impérios, lá chega o dia, em que chegam ao fim…

Não é por acaso que não se racionaliza e se argumenta sobre as causas da situação política (e económica, cultural, ideológica) dos EUA, em toda a sua complexidade e com todas as suas contradições, neste iniciado século XXI! O que foi a base da “tragédia” do debate Biden/Trump, independentemente do que se seguir e for o resultado das eleições em marcha. As razões profundas da crise e crises que atingem os EUA e o imperialismo que continua a suportar. As impossibilidades políticas e ideológicas dos comentadores de assumirem a crise do sistema capitalista e da necessidade para os povos, incluindo o povo dos EUA de superarem o modo de produção capitalista. Os preconceitos em ultrapassarem os limites teóricos, económicos, políticos e ideológicos do “idealismo filosófico” e do neoliberalismo. A impossibilidade de contradizerem o que andam há décadas a escrever e dizer nos órgãos de comunicação social sobre a “democracia” americana e o “paraíso na terra” da sociedade americana, e a intervenção imperialista dos EUA no mundo – por exemplo, o silêncio que fazem sobre as suas centenas de bases militares espalhadas por todo o planeta e as dezenas de agressões militares a países soberanos nas últimas décadas. Pois é, mas a verdade dos factos é como o azeite….

Mas tem razão CFA quando, observando o debate e o que vai pelo mundo, afirma que “Os sinos dobram por nós”. Parafraseia Hemingway de “Por quem os sinos dobram”, mergulhado no confronto da Espanha Republicana, aliada aos comunistas e forças de esquerda de todo o mundo, enfrentando as hordas fascistas de Franco apoiado por Hitler e Mussolini, e a “neutralidade” da social democracia europeia e americana. Mas podia acrescentar: os sinos dobram também pela Ucrânia e Gaza, pelo Iraque, Líbia, Síria, Afeganistão, pelo Yemen. Dobram pelas mortes e destruição do imperialismo norte-americano, que estrebucha, resiste a todo o custo contra a perda da sua hegemonia e supremacia planetária.

PS: Para meditação dos que defendem os círculos uninominais: mais uma vez o sistema de círculos uninominais do Reino Unido mostrou a sua intrínseca bondade “democrática” nas eleições do passado dia 05JUL24. O Partido Conservador com 23,7% dos votos obteve 121 mandatos (18,6% dos mandatos), o Partido Liberal Democrata com 12,2% dos votos alcançou 71 mandatos (10,9% dos mandatos) e o Partido da Reforma UK com 14,3% dos votos conseguiu 5 mandatos, (0,8% dos mandatos. Ou seja, com menos 2,1 pontos percentuais na percentagem de votos o Partido Liberal Democrata tem 14 vezes mais deputados que o da Reforma. Notável! Porque será que a comunicação social portuguesa não fala disto???

(1) Por ordem alfabética: Celso Filipe (CF), Jornal de Nogócios; Clara Ferreira Alves (CFA, Revista Expresso; Pacheco Pereira (JPP), Público; José Pedro Teixeira Fernandes (JPTF), Público; Luís Aguiar-Conraria (LAC), Expresso; Mª João Marques (MJM), Público; Miguel Monjardino (MM), Expresso; Miguel Sousa Tavares (MST), Expresso; Teresa de Sousa (TS), Público.

(2) Ver artigo “Os mais perigosos do mundo, segundo Pacheco Pereira”, Agostinho Lopes, Expresso online, 10JUN24.

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