www.sabado.ptAna Bárbara Pedrosa - 9 jul. 09:52

A sério que ainda estamos nisto?

A sério que ainda estamos nisto?

Opinião de Ana Bárbara Pedrosa

Vemos Paulo Núncio na televisão e estranhamos vê-lo num plasma se parece voz vinda do passado. No outro dia, disse no Parlamento: "Sempre que há um aborto, há eliminação de uma vida humana." É incrível como o CDS continua a existir, apesar de o futuro ter chegado.

Não é de agora, esta moda de os democratas-cristãos não conseguirem distinguir um embrião de um bebé. Isto vem de lugar nenhum e vai sempre ao mesmo sítio: homens fazem as considerações que entendem e acabam sempre a querer decidir pelas mulheres. A Bíblia há-de ter-lhes ensinado a condenação do Antigo Testamento, mas não a amar o próximo. Muito menos a tentar chegar ao tutano da vida.

A conversa entre esta direita é sempre a mesma. Paulo Núncio afirma-se pró-vida, o que tem a sua graça, como se alguma corrente de pensamento fosse per se pró-morte. Só isto já cria uma relação dicotómica maniqueísta, simplista, de bondade e de maldade – e isto, na política, é sempre um perigo. No caso, e posta a realidade em cena, vemos Paulo Núncio a desunhar-se por defender uma vida abstrata acima de qualquer coisa: vale mais o estágio inicial – embrionário, portanto – de uma vida do que um humano feito. Ou seja, vale mais a ideia de vida do que a vida que é gente.

Óvulo e espermatozóide, no seu entender, em vez de embrião, dão ser humano. Neste cenário, adoraria que algum jornalista o pusesse em frente ao óbvio. Que fazer perante os embriões criopreservados em clínicas de fertilidade portuguesas, feitos com recurso a doações de gâmetas anónimos? É que o CDS, tanto como a sua Igreja, sempre rejeitou a possibilidade de a concepção ser feita mediante utilização de material biológico alheio. Dá-me sempre a ideia de que o CDS é aquela velha abelhuda a coçar o bigode e a criticar as mini-saias à janela.

Mas voltando aos gâmetas: temos ali procriação – criação de vida – com recurso a técnicas que escapam às posições missionárias dos democratas-cristãos. Bem os vimos, enquanto a caravana passava, a quererem decidir de que matéria se faziam as famílias alheias. Já é costume. A Igreja, aliás, contesta que a reprodução seja removida do contexto conjugal, tendo o desplante de considerar adultério o que se passa num gabinete ginecológico e em laboratórios. Mesmo assim, a vida avança, e a verdade é que os embriões estão criados – e, desses, não se pode ter acesso à identidade do homem que doou o espermatozóide ou à da mulher que doou o óvulo ou à de ambos. Mudada a lei (agora, as crianças nascidas através de técnicas de procriação medicamente assistida com recurso a doação de gâmetas poderão, aos 18 anos, conhecer o nome dos dadores), volvido um período de cinco anos, estes embriões terão de ser destruídos. Está, aliás, em curso uma petição para reverter esta decisão, não aniquilando estas vidas. É um caso em que a realidade se impõe perante teorias conceptuais de imposição de acção alheia – e é também um que põe Paulo Núncio e afins a terem de lidar com as suas contradições.

Tratar um embrião como um bebé não resiste a nenhum teste de lógica – é o primeiro passo para a derrota do argumento. Uma falha de electricidade numa clínica de fertilidade que destrua a vida de embriões criopreservados, por dramática que seja, não é o mesmo que uma bomba a cair em cima de um berçário. Um embrião que pare de se desenvolver – essa matéria quase sem forma – não é comparável ao corpo compacto de uma criança sem vida. Uma perda gestacional involuntária é dramática, claro, mas não chega aos calcanhares de um caixão de meio metro. É que, de um lado, há uma expectativa, uma ideia de futuro; do outro, há a realidade, a concretude material das coisas, um sorriso desdentado.

A defesa da ilegalização da interrupção voluntária da gravidez é coisa feita no éter, porque não entende que a vida alheia não tem de ser igual à nossa. Temos de ir ao extremo para se perceber o horror desta defesa, que se mascara sempre de benevolência e de humanidade: imagine-se o que é obrigar uma criança de nove anos violada pelo avô a ter de levar ao fim uma gravidez. E o pior é que isto não é mero exercício retórico ou imaginativo. Não estou a tirá-lo da cartola, a la truque baixo ou exagerado para ganhar um debate: aconteceu mesmo no Brasil. E, acontecendo, tem de haver um cenário legal que proteja quem vive. Em vez disso, a posição de Paulo Núncio põe meia dúzia de células acima daquela vida – essa sim, que respira, anda, fala, ama e sofre. E, se menos fanáticos dirão que aqui o caso é diferente – diferente, por exemplo, do de uma mulher feita que, tendo engravidado, não desejou nem deseja a gravidez –, na prática o assunto é o mesmo: essa mulher terá sempre de ser maior do que as células que se desenvolvem no seu útero. E, seja como for, num e noutro caso, o valor do embrião é o mesmo.

As estatísticas são avassaladoras. Mais de um terço das mulheres passou por um aborto espontâneo. A dor que vem daí é a da ausência de futuro, é a quebra de uma expectativa que tem sabor de sonho, é a das décadas seguintes a mudarem de forma. Mas, indo daí, avança-se. E, havendo nova gravidez, e chegando esta ao fim, parece que a vida se compõe. É a perda de um filho – esse que se tem nos braços e cujo corpo tem o tamanho do mundo – que pode mudar a vida sem hipótese de redenção.

Seria bom que esta direita católica conseguisse ser mais do que mero moralismo insano. E seria bom que fosse posta em frente à vida, como prova dos nove. Já vimos Rita Matias, do Chega, sempre com a esperteza de uma anémona, a sensibilidade de uma carpete usada, a dizer que, mesmo tendo sido violada, uma criança deve ser obrigada a levar a gestação até ao fim. Mas teria a desfaçatez de o dizer em frente à criança, a essa coisa que lhe aparece como abstrata? Di-lo-ia em frente à mãe, à avó? Ignoraria o trauma da menina, e a seguir ia continuar a vestir o seu manto hipócrita de defensora das crianças? Alguém explique aos hereges que raio de cristianismo é este.

Tem sido impressionante ver o regresso da reacção ao espaço público – não digo conservadorismo, digo mesmo reacção. Não é manter o que existe, é andar para trás. E mais impressionante ainda é ver esta direita anacrónica a ser a tal velha a olhar à janela. Vimos coisa parecida durante a campanha eleitoral para as eleições legislativas, dizendo coisas de tal forma poeirentas que se ouviu a moral do Estado Novo a sussurrar-nos ao ouvido. Isso mesmo, Paulo Otero, esse que não gosta do 25 de Abril e que tem o desplante de falar da mulher "enquanto dona de casa". Pergunto-me sempre que espécie de pais são estes homens vidrados na ideia de família tradicional. Cumprirão a tradição masculina de não passar noites acordados, não mudar fraldas, não passar roupa de bebé a ferro? E, defendendo "a família", continuarão durante mais quanto tempo a atacar as dos outros? Protejam as criancinhas, mas só as deles, e só se as mulheres forem excelentes empregadas domésticas? Note-se que Otero faz parte do Movimento Acção Ética (só o nome é um tratado) que propôs "estatuto" e subsídio para a "mulher dona de casa". Sim, os homens também poderiam beneficiar, mas Otero julga que a mulher é "mais propensa". Mulher, esse conjunto de hormonas e carne que gosta de andar a limpar o pó; mulher, esse conjunto de útero, ovários e endométrio que nasce a saber passar a ferro; mulher, esse meio-humano a quem a vida pública não pode estar destinada; mulher, essa mão-de-obra que o Estado deve pagar para que um homem tenha sempre o jantar pronto na mesa. E um bocadinho de vergonha para acalmar esta gente toda, por favor? Mais crónicas do autor 08:52 A sério que ainda estamos nisto?

Não é de agora, esta moda de os democratas-cristãos não conseguirem distinguir um embrião de um bebé. Isto vem de lugar nenhum e vai sempre ao mesmo sítio: homens fazem as considerações que entendem e acabam sempre a querer decidir pelas mulheres.

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