expresso.ptTiago Fortuna - 9 jul. 09:00

Entre a solidão e a comunidade: em Nova Iorque encontrei um pedaço de identidade

Entre a solidão e a comunidade: em Nova Iorque encontrei um pedaço de identidade

Sonho com uma sociedade diferente – é essa a razão porque me levanto da cama. Em Nova Iorque vislumbrei mais um pedaço da minha identidade: quero tanto espaço para a individualidade como para expor a minha vulnerabilidade a outras pessoas. Sem medo da dor, da doença e das imperfeições

Acabo de concretizar o sonho de ir a Nova Iorque. Saí de Lisboa de rastos: recuperado de uma cirurgia onde fracturei os fémures, no rescaldo de uma crise familiar e ao lado de muito trabalho. Durante meses, o meu desenvolvimento pessoal ficou em segundo plano - era preciso cuidar do corpo, dos meus pais e de uma empresa. A solidão cresceu tanto quanto a minha capacidade de sobrevivência.

Fui com a urgência de viver, mergulhado no questionamento sobre o isolamento, o amor e o sentido de comunidade. Trouxe de volta clarividência, somei perguntas e um pedaço de identidade. Elaborar não é possível sem contar a história da viagem.

Viajar com deficiência é complexo e dispendioso. Quando em Julho de 2023 pensei ir, o Sérgio – meu melhor amigo – tinha sido aceite num estágio em Nova Iorque e não poderia dar-me assistência 24 horas por dia. A Ana, a melhor amizade que a música me deu, disse que iria comigo. Fiz e refiz os planos até perceber a necessidade de uma terceira pessoa, suportando eu as despesas. Pedi ao meu assistente pessoal, o Anderson, só que ele tem nacionalidade brasileira e a embaixada não emitiu visto turístico. O meu pai embarcou comigo.

A dinâmica de pai-filho tem contornos rigorosos de independência mas era a única solução e ele soube dar espaço à minha individualidade. Vivi 8 dos melhores dias da minha vida. Consegui deixar para trás a cirurgia e o drama familiar, jantei sozinho com o Sérgio e pus o dedo em feridas expostas. Também me diverti na ilusão de estar a viver O Sexo e a Cidade com a Ana - algures entre o Central Park e o Plaza Hotel.

Nova Iorque, cruel e assimétrica, foi, para mim, uma revelação: a diversidade ali não é um conceito, é antes uma realidade. Nunca tinha visto tantas pessoas com deficiência na rua, em transportes públicos, em museus ou em espectáculos. Ali, somos visíveis, tanto a usufruir do espaço público como a trabalhar. Simplesmente a viver.

Vi-me exposto a uma realidade distante e isso devolve-me ao maior questionamento que fiz da deficiência nos últimos meses: qual é a nossa capacidade de emancipação?

Somos educados para a autonomia, só que na deficiência ela existe em equilibrismo. Ora, vejamos. Os nossos corpos não se desenvolvem da mesma forma, eu tenho um metro e trinta centímetros. Não conquistei o espaço dado à privacidade no mesmo ritmo que, por exemplo, a minha irmã - eu preciso de apoio para transferir-me da minha cadeira de rodas para o chuveiro ou para a cama. Isto cria um fosso, um nós e eles. Esvazia-nos de pertença e dá-nos duas opções: resignarmo-nos à ausência de individualidade ou criarmos novas definições de independência.

Entregues a conflitos existenciais, somos estratificados. Ao lerem este texto, podem isolar-me na comunidade de pessoas com deficiência, mas a minha identidade é interseccional: tenho cor, género, credo, orientação sexual, país de origem e deficiência.

A interseccionalidade deixa-me sonhar mais alto. Em Nova Iorque, foi fundamental visitar o Stonewall Inn para o meu sentimento de pertença. Foi naquele bar, em 1969, que se resistiu, pela primeira vez, às forças policiais por amar alguém do mesmo género ou por se ser trans. Cinquenta anos passados de luta sistémica, combate-se a epidemia da SIDA, hasteia-se a bandeira de orgulho e cria-se uma verdadeira cultura.

Isto mostra que formar uma comunidade requer tempo, partilha, intimidade e amor. Ter uma comunidade é diferente de ter uma família. O amor consuma-se de outra forma: tanto pode ser fugaz como eterno. A família não se escolhe, a comunidade constrói-se. Nunca tinha visto comunidades tão plurais como em Nova Iorque.

Na realidade portuguesa, as pessoas com deficiência continuam a ser assimiladas pelos valores tradicionais. Sabemos que a esperança média de vida é mais curta, mas insistimos em queimar tempo à procura de curas. Eu tenho uma doença crónica, incurável, e o meu único desejo é ter qualidade de vida - em família e em comunidade. Uma não anula a outra, engrandecem-se.

Na convivência com diferentes comunidades, olho para nós, pessoas com deficiência em Portugal, e apercebo-me de uma solidão que não é saudável. Vejo-nos demasiadas vezes sozinhos em eventos culturais, sem conseguir sair à noite ou sem conseguir entrar num restaurante. Outra opção recorrente é estarmos com os nossos assistentes pessoais, os nossos pais ou os tutores das instituições em que vivemos.

Mas onde estão os amigos e as relações amorosas?

Acredito que a assistência pessoal pode ser o primeiro passo para encontrar esta parte da nossa identidade. O meu assistente leva-me dezenas de vezes a encontros sociais - foi essa, aliás, a primeira razão para o ter contratado. Não me questiona onde vou e porque vou, algo que raramente consigo evitar com os meus pais. Esta liberdade, trouxe-me uma nova forma de encarar a individualidade, levando-me depois à comunidade.

Sou um privilegiado nos recursos e no apoio médico que tive. Não me disseram que seria incapaz, mas também não disseram que seria capaz. A meritocracia não existe: partimos todos de lugares diferentes e a chegada está condicionada. O meu lugar é diferente dos meus amigos sem deficiência, eles entram e saem de um avião para Nova Iorque sem serem pegados ao colo.

Estas afirmações não me podem colocar acima ou abaixo de ninguém. Precisamos de saber ombrear causas, destruir a superioridade entre categorizações - credo, género, cor de pele, orientação sexual, deficiência, nacionalidade. A categorização sobrevive através da maioria económica. Estamos a deixar que as causas se desenvolvam ao ritmo do capitalismo.

Se a minha educação não me tivesse permitido o acesso ao inglês, talvez nunca tivesse desenvolvido um gosto tão grande pela cultura norte-americana e não me teria excedido para ir a Nova Iorque. Se o Estado português não me tivesse proporcionado assistência pessoal, também não percebia, hoje, que preciso de continuar a explorar as minhas relações pessoais.

Isto adquire-se com exposição, acesso e atrevimento. Com desilusões e com conquistas. De coração cheio ou partido. Num processo de tentativa e erro para encontrarmos aquilo, e quem, nos dá prazer. No trabalho, no lazer, na sexualidade. É assim que se desenvolvem gostos e opiniões e se tomam as melhores decisões sobre quem queremos ser.

A verdade é que, no meio de tudo isto, o direito à individualidade de pessoas com deficiência continua por conquistar. O nosso espaço pessoal é permanentemente invadido. Quando nos valemos por nós próprios, a conquista é tremenda. É aquilo que mais celebro hoje em dia. Porém, quanto mais conquisto, mais me apercebo que quero partilhar a minha vida com os outros.

Nesta angústia, dei por mim a perguntar: onde é que as nossas vidas terminam? Se tentar fazer um paralelismo com a morte mais impactante da minha família, penso na minha avó materna, que viveu em nossa casa até morrer. É certo que muitas pessoas acabam a vida em lares, mas o risco de institucionalização das pessoas com deficiência é ainda mais elevado. Temos menos parceiros, menos filhos, menos autonomia física. Existem milhares de pessoas com deficiência institucionalizadas.

E sim, eu também tenho medo de acabar num lar onde podem não saber cuidar de mim. Onde o conceito de autodeterminação não seja uma realidade.

. Preciso de continuar o meu caminho com pessoas que me confrontam com a diferença, que sejam referências para novos modelos de existência e, sobretudo, capazes da empatia.

Eu, como todos nós, mereço e quero ser amado.

NewsItem [
pubDate=2024-07-09 10:00:09.97
, url=https://expresso.pt/opiniao/2024-07-09-entre-a-solidao-e-a-comunidade-em-nova-iorque-encontrei-um-pedaco-de-identidade-2e17ce8d
, host=expresso.pt
, wordCount=1209
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2024_07_09_124445566_entre-a-solidao-e-a-comunidade-em-nova-iorque-encontrei-um-pedaco-de-identidade
, topics=[opinião]
, sections=[opiniao]
, score=0.000000]