expresso.ptRui Lage - 9 jul. 13:42

Droigauche

Droigauche

Enquanto Macron procurava trilhar, ilusoriamente, uma vereda para além da esquerda e da direita, Marine Le Pen cozinhava astutamente uma amálgama de direita e de esquerda. Chamemos-lhe uma “droigauche”, para jogar com o título de um sagaz e divertido poema de Alexandre O’Neill, “Esquerdireita"

Por mais notória que seja a propensão dos gauleses para a cólera, a França em 2024 é um país mais fraturado que em 2017. É forçoso concluir que Macron não é o cirurgião reconstrutivo de que o país precisava mas apenas um curandeiro eloquente e garboso. Talvez a sua vocação fosse a de liderar a Europa mais do que liderar o Hexágono. Por diversas vezes, ele procurou sacudir a UE do seu torpor. Mas, mesmo no plano europeu, as suas contradições são flagrantes: foi o porta-estandarte da soberania europeia ao mesmo tempo que tomou o partido de interesses sectoriais franceses, aniquilando o Acordo com o Mercosul. Vetou a adesão da Albânia e da Macedónia do Norte, em 2019, com argumentos cínicos. Na questão ucraniana, começou como pomba da paz e acabou como falcão…

. Apesar do fracasso da Frente Nacional no passado domingo, o cozinhado caiu no goto de uma população confusa perante a mutação sociocultural induzida pela imigração e agastada por uma governação vistosa no estilo mas rala na substância.

Quem, hoje, atentar nos pronunciamentos de Marine Le Pen identificará sem dificuldade formulações que historicamente associávamos à esquerda. Não é por acaso que ela gosta de citar o socialista libertário Jean-Claude Micheá, que desde há anos procura demonstrar o caráter apócrifo de muitas posições da esquerda contemporânea, sustentando mesmo que a “esquerda” e o “socialismo” andam desirmanados... Nos seus discursos, Le Pen fustiga a alta finança e a banca, faz o elogio do associativismo e do sindicalismo, pinta a UE como uma servente da Goldman Sachs… Não faltam peças jornalísticas com excertos ilustrativos. Transcrevo apenas um. Em Avignon, há dois anos, Le Pen insurgia-se contra uma globalização que “subjuga o homem às lógicas económicas e contabilísticas, às leis do mercado e ao dinheiro-rei”. Se esta frase nos aparecesse sem autoria, dir-se-ia saída de um Varoufakis, de um Pablo Iglésias ou… de um Jean-Claude Mélenchon.

É isto que explica, em parte, porque é que a extrema-esquerda, em França e alhures, investe tanta energia nas ditas causas identitárias e teima em pintar a imigração – desde logo a islâmica – com tons idílicos. Se a islamofilia de Mélenchon é tão ruidosa é porque serve para pelejar com a islamofobia de Le Pen. O líder de La France Insoumise sabe que partilha com a líder da FN a bandeira dos perdedores da globalização, dos gilets jaunes, dos maltratados da periferia, dos esquecidos do campo, etc. Não lhe resta senão mobilizar a artilharia contra a pulsão racista da FN e a mitologia bacoca da “família tradicional”.

É claro que, no seu parto, o fascismo francês era já uma confluência das águas do socialismo e do nacionalismo. Norberto Bobbio, numa obra que não perdeu qualquer atualidade, Direita e Esquerda, de 1994, lembrava que "o facto de o critério que estabelece a distinção entre direita e esquerda ser diferente do que estabelece a distinção entre extremistas e moderados implica que ideologias opostas possam encontrar pontos de convergência e de acordo nas suas franjas mais extremas". Acontece que, se o fascismo era antidemocrático, antiparlamentar, antiliberal, antirepublicano e antiburguês, os seus descendentes enfraqueceram esses antagonismos e aceitaram o jogo da democracia, em simetria com vários partidos comunistas ortodoxos que a dada altura se converteram ao eurocomunismo.

Estamos talvez a assistir ao aggiornamento da extrema-direita. E a uma recomposição das velhas ideologias, se não mesmo à geração de novas, num caldo que leva àquilo que Philippe Corcuff, um pensador da esquerda libertária que se tem dedicado a estudar estas mélanges, apelida de “confusionismo”. Simetricamente, diversas formações da esquerda radical têm assimilado tropos e mitos da direita: a liturgia da soberania nacional, o antieuropeísmo, o anti-iluminismo, o antissemitismo... A esquerda tem sido um contribuinte líquido do “confusionismo” ideológico.

A verdade é que a Nova Frente Popular e o movimento de Macron prestaram um valioso serviço à França e à Europa ao travarem o passo a Le Pen e Bardella. Esperemos que o Partido Socialista Francês e os Verdes tenham força suficiente para sedar o “droigauchisme” que floresce em La France Insoumise. O ideal será que o próximo Primeiro-Ministro francês saia das hostes moderadas e que seja, de preferência, o excelente Raphael Glucksmann, um eurodeputado convictamente federalista. O facto de ser um judeu que apoia a criação do Estado da Palestina não o livrou de ser atacado por ativistas da extrema-esquerda no último desfile do 1° de Maio. É por isso que, como ele mesmo vaticinou, o próximo Primeiro-ministro não pode ser nem um Júpiter nem um Robespierre. Ensurdecida pela estridência dos extremos, a França precisa do moderantismo do PSF. Precisa de um Danton (que mantenha a cabeça no lugar).

Cada qual é livre de se excitar com o extremo que mais lhe apraz. Os que aborrecem a gritaria e o sectarismo da paisagem política francesa talvez prefiram entusiasmar-se com a vitória esmagadora do Labour no Reino Unido. Claro que não faltará quem, na esquerda – inclusive no PS português – preferisse um Corbyn derrotado a um Starmer vencedor. São os que desdenham a velha virtude cívica e política da moderação – ou a mitezza, para voltar a Bobbio. Depreciar a moderação é outro ponto de convergência entre a extrema-esquerda e a extrema-direita.

Façamos figas para que Starmer não nos traga uma terceira via requentada mas antes uma quarta via, que passe também por uma reaproximação à União Europeia. E não seria irónico se, depois do Brexit e da bagunça dos Tories, os continentais tivessem de virar-se para a política inglesa em busca de alguma serenidade?

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