sol.sapo.ptJoana Andrade - 8 jul. 17:03

O segundo D

O segundo D

A Democracia do 25 de Abril começou em modo pirata, sem olho, perna de pau à direita.

Em 1981, nos meus 25 anos, não os de Abril, fui estagiar como professor numa escola da margem sul, então ainda vermelha e abrasada pelo rescaldo do PREC fumegante. O convívio humano e o entusiasmo escolar eram saudáveis, desafiantes e até divertidos, fiz lá amigos para sempre, mas havia um senão que os locais fingiam não lobrigar: só a esquerda tinha voz, nem precisava gritar, a direita apenas respirava, mal e assistida artificialmente! Todavia, já em plena AD de Sá Carneiro, lenta e inexoravelmente o povo português começara a escapar-se dos ditames comunistas. Perante a fixidez mental que não percebia a liberdade a mover-se comecei então a usar amiúde uma ironia quase sempre incompreendida. Após cada deceção esquerdista, habituei-me a rematar: «O povo não anda nada bom!». E eu, estupefacto, via os meus interlocutores confirmarem que a estupidez do povo não sabia votar. A democracia burguesa era um ludíbrio. Mas porque raio ninguém emigrava para as ‘boas’ democracias da Europa de Leste? Nunca percebi.

A ironia narrada retrata a passagem possível à Democracia, o segundo D dos três do 25/Abril, o primeiro Descolonizou em pura calamidade sem nome. Democratizar assim foi algo juvenil, ausência da natural maturidade de alguém que desiste de crescer. Quando entrámos na então CEE éramos, e ainda somos, uma quase democracia que a revolução fez quase abortiva. Sem Ultramar voltámos à terra de uma Europa que nem sempre nos quis, nem nós quisemos entender. O mar fora durante cinco séculos a nossa garantia soberana, se só europeus jamais seríamos portugueses. Sem África e pela mão de ‘son ami Mitterrand’, Soares seduziu: «A Europa está connosco». Nem sempre!

A Democracia do 25 de Abril começou em modo pirata, sem olho, perna de pau à direita: em poucos meses, dos 150 presos políticos libertados do regime da ditadura passámos a 1500 sem culpa formada ou julgamento, a mandados de captura em branco à escolha do militar de serviço no COPCON revolucionário. Milhares de portugueses fugiram ou exilaram-se, o nome de fascistas na testa, outros com ele nas costas ficaram por cá e distribuíram-se pela panóplia partidária, desde o CDS centrista ao PC, o qual, aliás, reciclou pides e afins. Entretanto, as primeiras eleições de 1975 proibiram três partidos de concorrer. A democracia começou, pois, como estágio popular até à revolução leninista. Ao cabo de ano e meio, pelo 25/Novembro, o povo chumbou os (des)orientadores estagiários e escolheu outro curso para futuro.

A década de 80 trouxe Cavaco Silva, um fontismo atualizado em betão e vias de comunicação. Com o mar arredado abatemos navios, abandonámos pescas e, em terra, agora só europeia, passeámos vertiginosos em jipes, engolimos subsídios e autoestradas de paisagens iguais. Os índices económicos e socais fizeram-nos quase europeus mesmo ao pé-coxinho, pois a direita política em 50 anos de democracia manca nunca governou: a AD de Sá Carneiro fez o reequilíbrio possível; o cavaquismo a modernização necessária; Durão e Santana não existiram como modeladores do país, um fugiu, outro não deixaram; Passos Coelho não pôde ter programa mobilizador, com a corda na garganta quem respira? Em 50 anos fomos sempre governados pelo centrão, nunca à direita. E, afinal, o PPD que sempre quis ser PSD, nunca resolveu a sua contradição originária: as bases são largamente de direita, as elites de centro esquerda.

A Democracia abrilista segue coxa, não obstante a putativa liberdade. É sempre bem-vinda mas convém dizê-lo, viria com ou sem revolução, a Espanha di-lo, a Europa de Leste o confirma, a história corre democrática. E, contudo, não há reforma eleitoral e pior, acentua-se a censura wokista politicamente correta que a esquerda global impõe. E quando o povo vota como lhe diz a sua verdade, às vezes nua e crua, passa a extrema direita. O melhor mesmo é fazermos como Bertolt Brecht, o dramaturgo que, num assomo de crítica sincera à RDA comunista ao reprimir uma revolta popular em 1953, ironizou num poema:«“E se o governo dissolvesse o povo e / Elegesse um outro?». Talvez, lá como cá, o povo continua a não andar nada bom! 

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