sol.sapo.ptJoana Andrade - 8 jul. 17:00

A social-democracia aborrece

A social-democracia aborrece

Demos o Estado Social como garantido, e com este desleixo desvalorizámos desferimos um enorme golpe na Democracia.

A França está irremediavelmente dividida ao meio. O Centro foi esmagado entre  a extrema-esquerda e a extrema direita. Macron falhou redondamente o seu ‘Ensemble’. Simplesmente,  os franceses não querem estar ‘ensemble. A Democracia é muito bonita mas não enche os bolsos, e a Liberdade, no fundo e em essência, para a maioria  conta pouco. Ou seja: conta pouco o que de mais precioso a Democracia – e só a Democracia – nos pode dar. Para levar horas a ver jogos de futebol na Televisão ou telenovelas ou crimes passionais; para passar os fins de semana a ver as montras nos centros comerciais; para ir para as praias e comer sardinhadas na Caparica; para sofrer num encontro entre o Sporting e o Benfica – para nada disto e muito mais do género não é preciso Liberdade. A Liberdade interessa a uma elite de políticos e intelectuais que, por necessidade uns e por vocação outros, precisam de se instruir, de pensar, de se exprimir, lendo,  falando ou escrevendo. A verdadeira Liberdade não interessa a mais ninguém. Resta, portanto, a Democracia.

Porém, o que esta tem para oferecer é imenso. Não é apenas nem sobretudo as eleições em intervalos regulares. Mas já ninguém se lembra do que antes dela era a pobreza. E não me refiro a uma pobreza residual  como ainda hoje existe,  refiro-me a uma maioria da população não ter tecto, não ter que comer, não ter que vestir, não ter escolaridade. Recordo-me, em miúda, de verificar na escola primária em Ovar, cujo recreio eu avistava da minha marquise,  que  toda a rapaziada se apresentava descalça, sendo os meus dois irmãos os únicos que envergavam sapatos. Eu teria uns três a quatro anos; a coisa deu-me nas vistas, mas não me lembro de me ter chocado: Portugal era assim, um país descalço.

Tudo isto a social-democracia, com expressivas excepções, reconheço, varreu da paisagem dos países que se começaram a desenvolver no final da Segunda Grande Guerra. De Gasperi, primeiro ministro italiano, e Adenauer, chanceler alemão, ambos democrata-cristãos, conceberam em conjunto o Estado Social que, nas linhas principais e essenciais, imputava aos Estados a obrigação de evitar meninos descalços na escola pública e idosos entregues a si mesmos, sem ninguém ou nada que lhes acudisse. Em suma, Gasperi e Adenauer desenharam o actual Estado Social. A Europa, gradualmente, seguiu o novo modelo de governação.

O que aconteceu que levasse agora uma grande parte da Europa  a rebelar-se,  enjeitando a social-democracia e, a avaliar pelo exemplo francês (mas outros exemplos houve já num tempo recente) a sentir-se atraída pelos extremos ? Porque a SociaL-Democracia se esgotou, quero dizer, porque se cumpriu. Logicamente, já não mobiliza quase ninguém. A extrema-esquerda oferece ‘amanhãs que cantam’, sonha com uma sociedade igualitária independentemente das capacidades e habilitações de cada um. A extrema-direita agita a bandeira do nacionalismo e uma espécie de regresso à Europa das nações semelhante à que se desenhou e vingou na sequência da Paz de Vestfália em 1648.  A miragem da sociedade igualitária, sem ricos, sem hierarquias é, continua a ser, uma utopia atractiva que congrega multidões na rua e desafia a polícia ‘burguesa’. Em suma: é um combate que desperta emoções, desencadeia movimento, agitação. A inundação das ruas parisienses  pelos adeptos da ‘França Insubmissa’ ilustra isto mesmo: partir montras e incendiar carros e caixotes de lixo dá gozo, é entusiasmante.

No outro extremo, à direita, os riscos de cerciamento dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos não amedronta os adeptos. Na sua maioria são xenófobos e racistas, convencidos de que a miscigenação da  França degrada a pureza da raça francesa e branca. Sonham com a restauração da grandeza passada da França tal como De Gaulle a via: independente de todos os Estados, em especial dos Estados Unidos da América,  da Nato  e de quaisquer  outras agremiações que pudessem embaraçar a França na afirmação da sua inigualável e insuperável ‘grandeur’. 

De tal maneira o Centro social-democrata está subalternizado, que os seus problemas específicos mal foram abordados. E no entanto eles são muitos e graves. A começar por saber se a França e a Europa serão capazes de crescer economicamente para fazer face às despesas crescentes que o Estado Social custa, um tema que, com as hostes sideradas com a luta entre os dois extremos, constituiu nas eleições francesas um assunto de terceira ordem. Somos mimados e estamos mal habituados. A Social-Democracia está cumprida e aborrece.

Historiadora

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