expresso.ptCláudia Santos - 13 jun. 08:00

Robespierre, Lenine, Ventura e o imigrante da Praça do Almada

Robespierre, Lenine, Ventura e o imigrante da Praça do Almada

Como o leitor bem compreenderá, é impossível olhar para estas linhas e ver nelas um propósito de comparação do Ventura pátrio àquelas figuras históricas. O que se quis recordar que os aproxima é apenas o recurso ao conceito de “inimigos do povo”. Que tem o seu próprio peso – um peso que faz barulho quando cai

Quando André Ventura chamou “inimigos do povo” a jornalistas que tinham noticiado o seu encontro, na Póvoa de Varzim, com um imigrante do Bangladesh, talvez não conhecesse o uso dado ao conceito por ditadores de várias espécies, daqueles dignos de inscreverem os seus nomes na galeria sinistra dos mais sangrentos de toda a história da humanidade. Se o desconhecia, é mau. Se o conhecia, é pior.

Robespierre, em pleno Terror, proclamava a morte como destino natural dos inimigos do povo (proclamava e praticava) e já achava que a disseminação de notícias falsas era uma das atividades a que preferencialmente se dedicavam tão perigosas criaturas (“les beaux esprits se rencontrent”). Mais tarde, também Lenine se tornou um grande apreciador do conceito, que fez aliás desaguar significativo número de clientes nos tribunais que se ocupavam da eliminação dos contrarrevolucionários de diferentes estirpes, com a eficiência que todos lhes reconhecemos. Mao-Tse Tung foi outro grande estadista que não conseguiu resistir ao apelo do termo e há ainda vários relatos que associam o uso da expressão à Alemanha nazi – onde, porém, parece ter beneficiado de maior simpatia o conceito de “inimigos do Estado”, aliás muitíssimo abrangente, tendo acabado por incluir, entre outros, não só os judeus, mas também os ciganos ou os homossexuais. Nem Donald Trump nem André Ventura inventaram a pólvora, portanto (é duvidoso que conseguissem, mesmo que quisessem). Mas não deixa de merecer reflexão o despudor com que usam sem pestanejar uma terminologia associada ao extermínio de tantos milhões. Nem a associação que fazem entre aqueles que vêem como inimigos dos seus projetos de poder e os inimigos do povo. Fica-se um bocado arrepiado quando se ouve isto. E começa-se a achar que podem existir boas razões para se duvidar do optimismo com que Steven Pinker nos aspergiu em The Better Angels of our Nature – não, talvez o progresso contínuo não esteja necessariamente inscrito no ADN da humanidade. Talvez precisemos de nos esforçar mais.

Esboçado este pequeníssimo resumo das razões para um arrepio, poder-se-ia até achar que a história do imigrante do Bangladesh com que a caravana do Chega se cruzou na Praça do Almada se tinha tornado já uma minudência, afogada pelo disparate maior que André Ventura disse a seguir. Mas, precisamente, é isso que não podemos deixar que suceda, essa tentativa de apagar com barbaridades sempre mais frescas o despautério anterior e logo fora do prazo, numa rampa deslizante rumo ao vazio de valores e de esperança.

O que parece certo é que depois de o Governo se ter apressado a aprovar medidas de contenção da imigração (sem a intervenção do Parlamento?), desconsiderando a necessidade de mão de obra em setores vitais da nossa economia e o jeito que o proibicionismo vai dar aos traficantes de pessoas, Ventura subiu, como habitualmente faz, a fasquia. Não lhe basta saber que o Governo já começou a pôr trancas à porta e que isso potenciará a vulnerabilidade de milhares de migrantes. “Ainda existem portugueses neste país”, clamou um apoiante do Chega, insensível às palavras de um homem que dizia ter mandado embora a filha criança por causa do racismo que explicava que existe em Portugal.

Tudo isto sucedeu sob o olhar pétreo de Eça de Queiroz, cuja estátua domina a Praça do Almada. O escritor, que viveu boa parte da sua vida fora de Portugal, escreveu sobre a emigração sobretudo em As Farpas (“em Portugal quem emigra são os mais enérgicos os mais rijamente decididos”). Curiosamente, o Festival Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim, sediado a poucos passos do lugar onde Ventura e o imigrante se encontraram e sonhado aquando do centenário da morte de Eça de Queirós, acolheu este ano um painel de escritores intitulado “Minha pátria à flor das águas, para onde vais?”, a que tive o gosto imenso de assistir. Um dos oradores, refletindo sobre o conceito de pátria, recordou a frase que comummente se atribui a Samuel Johnson: “o patriotismo é o último refúgio do canalha”.

Atordoada com o ressurgimento, pela boca de Ventura, dos “inimigos do povo”, esforço-me por pensar que uma sucessão de coincidências felizes, entre a Praça do Almada, Eça de Queirós e o Correntes d’Escrita, indiciam que resistiremos. E que talvez consigamos continuar a construir um país onde possamos viver juntos. Um país para onde um dia possa regressar uma qualquer menina mandada embora para fugir ao medo.

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