expresso.ptJosé Soeiro - 12 jun. 16:31

No rescaldo das eleições, uma pequenina luz em Bruxelas

No rescaldo das eleições, uma pequenina luz em Bruxelas

Enquanto tantos fascistas se acotovelam para ocupar as suas cadeiras no novo Parlamento e os grupos do centrão europeu se agitam na negociação dos lugares para o continuísmo, é de pequeninas luzes bruxuleantes que pode porventura nascer outra Europa

Como sempre acontece, nem todas as previsões acertaram. Dos resultados destas eleições europeias saiu um Partido Popular Europeu reforçado, uma diminuição maior do que esperada de Liberais e Verdes, uma pequena diminuição do centro-esquerda e o crescimento da extrema-direita, fulgurante nalguns países, menor que o anunciado noutros. A esquerda europeia, à esquerda dos socialistas e democratas, resistiu e, embora com dificuldades, dá sinais importantes de recomposição em alguns países. A esquerda italiana reentrou no parlamento Europeu. A esquerda nórdica cresceu, particularmente na Finlândia como reação a um governo que integra a extrema-direita. Em França, perante a convocatória de eleições antecipadas por Macron, foi já anunciada uma nova Frente Popular (com França Insubmissa,Verdes, Partido Socialista, Partido Comunista e outros grupos), convocando a memória de 1936, quando se constituiu um governo de aliança das esquerdas que foi responsável por alguns dos maiores progressos para as classes populares (desde logo, a consagração de férias pagas ou da semana de 40 horas), numa época em que, noutros países europeus, era o fascismo que avançava.

Este sinal francês, que resulta de um sobressalto contra o tapete que Macron parece estender à extrema-direita para governar (reforçado pelo anúncio do líder dos Republicanos, a direita clássica gaulista, de que está disponível para uma aliança com a extrema-direita), contrasta com os negócios que entretanto se fazem para os lugares de topo da União. Ursula Von der Leyen, empenhada defensora do genocídio cometido por Israel em Gaza e que passou os últimos meses a negociar com a extrema-direita de Meloni a sua sobrevivência à frente da Comissão (facto alías que Marta Temido criticou em campanha), conta agora, tudo indica, com o apoio dos socialistas europeus para se manter no poder, num pacote que inclui provavelmente a indicação de António Costa para a presidência do conselho europeu, com o patrocínio de Montenegro. Afinal, o centrão está disponível para os seus entendimentos e negócios e pouco importa que Von der Leyen seja a mesma que Costa acusou em tempos de ceder ao “canto de sereia” da extrema-direita.

Coincidências da história, estas eleições europeias aconteceram ao mesmo tempo em que se realiza em Genebra a conferência da Organização Internacional do Trabalho, a única organização internacional do sistema da Sociedade das Nações que lhe sobreviveu. Quando no pós Segunda Guerra se tratou de refundar a OIT perante a vitória contra o fascismo e o nazismo, foi aprovada a Declaração de Filadélfia, em maio de 1944, faz agora 80 anos. Integrada na constituição da OIT desde então, este documento afirma os princípios sobre os quais se funda a organização. O primeiro de todos: “o trabalho não é uma mercadoria”. O espírito de Filadélfia é a afirmação do compromisso mundial contra uma ordem fundada no mercado, elevando a dignidade humana a pedra de toque de todo o edifício jurídico internacional, submetendo a economia ao princípio da justiça social. Foi também esta disposição que, num belo filme, Ken Loach chamou de “Espírito de 45”, sob o qual foram erigidos os estados sociais, o controlo democrático da economia, consagrados direitos sociais fora da organização mercantil. Num outro tempo histórico, foi com esse compromisso forte que se enterrou a extrema-direita da época.

Em que medida pode o “espírito de Filadélfia” inspirar-nos hoje face ao momento europeu? De que alianças precisamos e em torno de que valores? Que pequenos passos podemos dar com as forças que temos? Em que gestos deve a esquerda encontrar-se?

Dou um pequeno contra-exemplo desta semana, em Bruxelas. Enquanto tantos fascistas se acotovelam para ocupar as suas cadeiras no novo Parlamento e os grupos do centrão europeu se agitam na negociação dos lugares para o continuísmo, uma eurodeputada portuguesa, Anabela Rodrigues, eleita pelo Bloco, levará ao Parlamento europeu um grupo de algumas dezenas de trabalhadoras do serviço doméstico, a maioria portuguesesas, muitas migrantes, que representam provavelmente o setor mais apoucado e menos reconhecido do mundo do trabalho, com altos níveis de informalidade, ausência de acesso a direitos elementares de proteção social, com um trabalho desvalorizado só notado quando não é feito, em que a exploração se cruza com a desvalorização do trabalho das mulheres e a discriminação do trabalho racializado. Na quinta-feira, elas ocuparão o espaço e tomarão a palavra no Parlamento Europeu, apresentarão uma peça de teatro sobre os seus problemas, juntando-se na sexta-feira à Liga das Trabalhadoras Domésticas de Bruxelas, em greve na véspera do Dia Mundial do Trabalho Doméstico, assinalado todos os anos a 16 de junho.

É pouco? Talvez. Mas é como essa “pequenina luz” de que falava Jorge de Sena, “brilhando incerta”, “bruxuleante e muda/ como a exactidão como a firmeza/ como a justiça”. E é também dessas pequeninas luzes bruxuleantes, ou desses pequenos grandes gestos, que pode porventura nascer outra Europa.

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