sol.sapo.ptGonçalo Morais - 12 jun. 22:40

O homem das mãos de guardanapo e com barbatanas no lugar dos pés

O homem das mãos de guardanapo e com barbatanas no lugar dos pés

Armando Nogueira chamou-lhe Filósofo do Futebol mas o cognome foi largamente exagerado.

Quando apareceu no balneário do Posto Quatro Futebol Clube, uma agremiação do Rio de Janeiro já desaparecida, os colegas espantaram-se com o tamanho das suas mãos: tinham 23 centímetros de largura – verdadeiros guardanapos. Já os pés pareciam barbatanas: calçava o 46. Vinha lá de Resende, na parte fluminense do Vale do Paraíba, onde nasceu a 16 de junho de 1906, e era um galhofeiro. Chamava-se António Franco de Oliveira mas, vá lá saber-se porqu��, quando passou do Posto Quatro para o Carioca Esporte Clube, que também já é defunto, começaram a tratá-lo por Neném. Por extenso Neném Prancha. O Prancha já se percebe melhor por causa das mãos e pés avantajados. Depois de pendurar as botas (e que botas!) fez de tudo: roupeiro, massagista, olheiro e treinador. Nunca falava da sua infância nem da sua vida em Resende. Era como se tivesse nascido aos 11 anos, altura em que largou a casa dos pais, o biscateiro Zeferino e Dona Júlia, empregada doméstica. Apesar disso, sobre futebol falava pelos cotovelos e soltava amiúde frases meio irónicas: «Jogador de futebol, tem que ir na bola com a mesma disposição com que vai num prato de comida. Com fome, para estraçalhar». Ou: «Jogue a bola pra cima, pois enquanto ela estiver no alto não há perigo de gol». Pedro Zamarra, escritor, recolheu um dia os pensamentos diversificados de Neném. Publicou-os em livro: Assim Falou Neném Prancha. Digno de Nietzsche. Já Armando Nogueira, cronista de robustíssimo talento, como diria o Alencar do divino Eça, pôs-lhe o cognome de Filósofo do Futebol.

A sua carreira como futebolista foi tão fraca, mas tão fraca, que ninguém guarda registo das suas façanhas em campo, se é que foi protagonista de alguma. Doente pelo Botafogo, entretinha-se a ver os garotos nas peladinhas de Copacabana, escolhendo os melhores para entrarem para uma escolinha que fundou. Depois, os melhores dos melhores eram entregues no portão do clube da Estrela Solitária. Aliás, acabaria por ir viver para um barracão pertencente ao Botafogo que assim o ajudava a viver já que também não tinha muito jeito para angariar a sua subsistência. A sua fatiota preferida era composta por uma camisa desbotada e calções. Por causa da dificuldade em encontrar sapatos nos quais encaixar as barbatanas preferia andar de chinelos. Toda a figura era caricata e, talvez por isso, tenha despertado a atenção dos jornalistas que o atazanavam em busca de frases sonoras com as quais encher as manchetes dos periódicos. E Neném não se fazia rogado: «Quem pede tem preferência, quem se desloca recebe». Estava sempre pronto para a laracha da ordem, não desiludia quem lhe pedia a opinião sobre um jogador, por exemplo: «O Didi joga bola como quem chupa laranja, com muito carinho». Um dia descobriu um jovem bem apessoado, com tendências esotéricas, Heleno de Freitas, durante anos vedeta do Botafogo, até que o lança-perfume o conduziu para os labirintos da loucura, tendo acabado a vida num hospício sem saber quem era um tal Heleno de Freitas. Outras das suas apostas acertadas foi Júnior, lateral-esquerdo do Flamengo e da seleção brasileira. Ou seja, de vez em quando acertava em cheio e ganhava ainda mais aura perante a imensidão de adeptos das suas flamejantes teorias. Tinha frases para tudo e mais alguma coisa. «O goleiro deve andar sempre com a bola, mesmo quando vai dormir. Se tiver mulher, dorme abraçado com as duas». Aliás, teve tantas frases e de tal forma espalhadas pela imprensa e repetidas por outros que muitas delas já ninguém sabe se são ou não da autoria de Neném Prancha. É um dos grandes problemas de ser prolixo, a roçar a verborreia. «Jogador bom é que nem sorveteria: tem várias qualidades». E a malta sorria da bonomia de Neném. «O importante é o principal, o resto é secundário». Era como se andasse enrolado na própria língua. Havia tanta gente a querer ouvir frases de Prancha que ele vomitava algumas sem sentido ou tão básicas que não honravam o seu sopro filosófico. Tornou-se, por assim dizer, um papagueador profissional e como tal se manteve até ao dia da sua morte, 17 de janeiro de 1976. A coisa tomou tais proporções que, depois da celebridade, veio a insinuação sempre infrene da dúvida. Mas esse tal Neném Prancha dizia mesmo tudo o que lhe era atribuído?, perguntavam alguns. Outros ridicularizavam a sua figura que chinelava pelo calçadão. Esse cara não existe! Mas existiu, pois! É possível que tenha sido menos palavroso do que o quiseram fazer mas há quem continue a citá-lo de cor: «Penalti é uma coisa tão importante, que quem devia bater é o presidente do clube!». E se muitas vezes complicava, outras simplicava como mais nenhum: «Futebol é muito simples: quem tem a bola ataca; quem não tem defende». Não sou capaz de não lhe dar razão.

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