sol.sapo.ptJoana Andrade - 12 jun. 12:01

A minha amiga cigana

A minha amiga cigana

A D. Fernanda era uma mulher muito limitada, sem grande instrução, mãe de vários filhos, alguns com graves problemas de saúde, mas com uma confiança ilimitada em mim.

Nos meus tempos de criança, alguém, nem sei quem, incutiu em mim o medo dos ciganos, de tal modo que a minha infância foi marcada por uma reação negativa sempre que me cruzava com uma pessoa dessa etnia.

Um dia, em Torres Vedras, passeando de mão dada com a minha avó, de repente veio ao nosso encontro uma cigana. Entrei em pânico, desatei a chorar e segurei a mão da minha avó com quantas forças tinha. Procurava-me quase todas as semanas, pedindo auxílio por causa de um dos filhos, portador de doença psiquiátrica, que, quando não tomava medicação, se tornava agressivo e perigoso, obrigando a família a sair de casa. Quantas vezes não pedi eu apoio à PSP para nesses momentos de aflição nos ajudar levando-o à urgência de Psiquiatria? Tantos favores fiquei a dever à corporação que, conhecendo bem o caso, sempre se dispôs a colaborar. Aqui lhe deixo um cumprimento e o meu abraço reconhecido. Por esse motivo a D. Fernanda já era muito conhecida na unidade e todo o pessoal, mal ela entrava nas instalações, avisava-me logo estar ali ‘a minha amiga cigana’.

Hoje posso dizer que conheço relativamente bem aqueles seres humanos nem sempre compreendidos, quando não mesmo marginalizados, por certos setores da sociedade. Para mim, são pessoas como nós, iguais em direitos e deveres, que devem ser tratadas como os outros cidadãos. No exercício das minhas funções, nunca tive nenhum problema com utentes-ciganos e mantive sempre com todos eles uma boa relação. Quando se despediam de mim, no final da consulta, apertavam-me a mão e, olhos nos olhos, utilizavam a mesma expressão – «Deus o abençoe» – que me deixava inquieto e pensativo. Nas visitas domiciliárias, tinha sempre à minha espera uma ‘escolta’ para acompanhar de forma carinhosa ‘o seu médico de família’.

Um pouco por tudo isto, é assim que vejo o povo cigano: simples, solidário, merecedor do nosso apoio e devendo sempre que possível ser reintegrado na sociedade (como já tenho visto, e bem, em diversas áreas).

Cessei funções naquela unidade quando me reformei. Por lá deixei a minha amiga cigana com a sua família carregada de complicações e as muitas histórias que recordo com emoção. Por ironia do destino, a D. Fernanda veio vender mercadoria para o meu bairro e, de quando em quando, encontro-me com ela na rua.

Ao ver-me, aperta-me as mãos como quem não quer que eu me vá embora e, de lágrimas nos olhos, diz sentir a minha falta na sua vida. São encontros penosos e difíceis também para mim, por perceber que, por trás do saco que põe à cabeça transportando o seu ganha-pão, estão muitas dores, dificuldades e problemas por resolver.

Era um sábado de manhã quando vi a D. Fernanda pela última vez, subindo a rua de saco à cabeça, arrastando-se quase sem poder. Fui ao seu encontro, peguei-lhe na mão já deformada pela idade, com a pele seca e rugosa, e perguntei:

– Como vai D. Fernanda? Como estão os seus filhos?

– Mal, senhor doutor. Mas tenho que trabalhar para eles – respondeu-me com ar triste e amargurado, e seguiu o seu caminho.

Fiquei sem reação. Que Deus abençoe a minha amiga cigana

(Por se tratar de um caso da vida real, o nome da utente foi trocado).

Médico

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