expresso.ptRui Lage - 12 jun. 15:00

O angelismo das esquerdas em matéria de imigração é perigoso para as democracias europeias

O angelismo das esquerdas em matéria de imigração é perigoso para as democracias europeias

A esquerda inibe a possibilidade de um debate franco e descomplexado sobre um tema que, a prazo, pode colocar em cheque a paz social, com graves consequências para a nossa democracia

A Fundação Jean Jaurès publicou recentemente um estudo que devia ser lido por todos quantos se reclamam ideologicamente de esquerda, mais ainda na ressaca de umas eleições ao Parlamento Europeu que viram a extrema-direita alcançar o maior número de mandatos de sempre. Esse estudo tem por título “A Esquerda e a Imigração: Reflexão Histórica e Perspetivas Estratégicas” e é da lavra de Bassem Asseh e Daniel Szeftel. De cada vez que a esquerda procura reatar com as suas posições históricas quanto à regulação da imigração, argumentam os autores, esse esforço é conotado por membros do seu próprio campo com um discurso racista e de extrema-direita. O texto começa por recordar como o movimento obreiro, desde a sua génese, enfrentou o dilema de conciliar um internacionalismo solidário com a recusa da utilização de trabalhadores estrangeiros para esmagar salários e furar greves. Essa luta foi uma luta de Marx, como foi uma luta de Jean Jaurès. Em França, no início do século XX, foram os sindicatos a tomar a dianteira para defenderem a equiparação salarial entre trabalhadores nacionais e estrangeiros. Nos anos sessenta, o mundo sindical já reivindicava políticas de alojamento para os imigrantes, bem como programas de formação profissional e alfabetização. Queriam evitar a todo o custo o que agora chamamos de dumping salarial e social.

Tudo mudou na década de oitenta. É nessa altura que a esquerda abandona a sua defesa clássica dos imigrantes face à sobre-exploração, que fazia em registo laico e igualitário, e passa a colocar o foco num “direito à diferença” das comunidades de imigrantes, incluindo à diferença religiosa, encorajando-as a desenvolverem os seus particularismos culturais e espirituais. Ao conceber a imigração como um direito humano, a esquerda criou um clima favorável não só à desregulação dos fluxos migratórios como à incompreensão e à incomunicabilidade entre as populações nacionais e estrangeiras. Foi precisamente na década de oitenta que a Frente Nacional – que antes fazia pouco ou nenhum caso do tema – começou a colher votos em quantidade. Hoje é a maior força política francesa do ponto de vista eleitoral, com 32% dos votos obtidos a 9 de Junho.

Evidentemente, não vivemos na época de Jaurès nem nos Trinta Gloriosos. O crepúsculo demográfico da Europa, bem como a indisponibilidade de muitos europeus para trabalharem duramente a troco de salários exíguos, propicia a entrada de cada vez mais estrangeiros. Infelizmente, estes sujeitam-se ao que há, porque o que tinham como horizonte era a desesperança. Sem os imigrantes, como tem sido dito, as nossas economias ficariam paralisadas. Mas incorrem numa tremenda falácia, ou padecem de uma grave amnésia, aqueles que falam como se a regulação da imigração – uma regulação vigorosa – fosse estranha ao corpus ideológico da esquerda.

Na verdade, a regulação da imigração tornou-se uma questão de sobrevivência para muitas formações da esquerda europeia, desde logo para as que têm vocação de poder. Os resultados obtidos nas europeias pela extrema-direita, ou por uma direita clássica endurecida no que toca à imigração, são bem a prova disso. Na França e na Alemanha, os dois países-chave da construção europeia, a imigração é o principal chamariz da extrema-direita. A tal ponto que o eleitorado alemão fez vista grossa à colonização da AfD pelas agendas russa e chinesa, recentemente denunciada. Recorde-se que a imigração já tinha sido o prato-forte da campanha que ditou a saída do Reino Unido da UE, em 2015. Nesse mesmo ano, o Eurobarómetro mostrava ser essa a preocupação cimeira para 45% dos europeus. Foi há quase uma década. Hoje é o que se sabe: por mais que nos consolemos com a longevidade do “centro”, a soma de todos os partidos de extrema-direita ou de direita radical que elegeram eurodeputados no passado domingo daria o segundo maior grupo político do Parlamento Europeu.

Aliviemo-nos com o aparatoso recuo eleitoral do Chega face à votação que obteve nas legislativas, mas não subestimemos o facto de esse partido ter elegido pela primeira vez eurodeputados, os quais agora se sentarão ao lado dos seus confrades putinistas e nacional-populistas, em Bruxelas e Estrasburgo, para comungarem da teoria da “grande substituição” ou da “impostura das alterações climáticas”.

Por cá, como no resto da Europa, a esquerda tem-se limitado a reproduzir uma visão idílica dos fenómenos migratórios. É uma visão simultaneamente intransigente e acomodatícia. A imigração é sempre uma benesse, venha de onde vier e em que quantidade vier. Qualquer manifestação de reserva a este postulado é veementemente descartada como o produto da ignorância e do preconceito, quando não do racismo. Com tal postura, a esquerda inibe a possibilidade de um debate franco e descomplexado sobre um tema que, a prazo, pode colocar em cheque a paz social, com graves consequências para a nossa democracia.

A diferença que importa ter em conta, na perspetiva da esquerda, é a diferença entre a Suécia e a Dinamarca, isto é, a diferença entre uma das mais permissivas e uma das mais restritivas políticas migratórias. No primeiro país governa uma coligação da direita com apoio parlamentar da extrema-direita, que destronou o anterior governo social-democrata. No segundo, governa uma coligação liderada pelo partido social-democrata, a extrema-direita é residual e o bem-estar das populações é dos mais expressivos do mundo.

Mostrar as vantagens da imigração não tem de tornar-se um exercício de evangelização que estigmatiza qualquer expressão de ceticismo ou discordância. As esquerdas cometem um grave erro quando reduzem um tema tão complexo a um dualismo primário que opõe os agentes do bem aos agentes do mal.

Podemos escolher ser anjos e assegurar um lugar no céu dos ideais, desde que tenhamos a consciência de que isso pode significar ceder à extrema-direita o plano terreal. Já aconteceu em Itália. Na Finlândia. Na Suécia. Na Holanda. É cada vez mais provável que aconteça em França.

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