www.sabado.ptAna Bárbara Pedrosa - 10 jun. 18:37

Como calar André Ventura

Como calar André Ventura

Opinião de Ana Bárbara Pedrosa

Nem tem que ver com resultados eleitorais. Na semana passada, um imigrante confrontou André Ventura com a vida de todos os dias. Vindo do Bangladesh, o homem teve uma filha cá, que entretanto recambiou para o país de origem do pai, protegendo-a do racismo português. Em frente às câmaras e ao líder do Chega, Iqbal – com um nome como nós, gente como nós – chorava como tem de chorar quem tem a filha ao longe, resultado de uma vida estragada. Ventura olhava. Iqbal queixava-se e apontava o dedo: "Sempre que fala, é racista." De bolinha baixa, sem o ufanismo trauliteiro do costume, Ventura ainda devia pensar no que fazer perante a vida. É que daquela vez não eram só discursos, e os imigrantes não eram uma entidade ao longe, uma massa indistinta sem nome, sem cara, sem dor. Ali estava Iqbal com uma vida como a nossa – trabalha, tem família, tem visto, paga impostos.

O problema é que Ventura nunca consegue deixar de ser Ventura. Leva com a realidade como quem recebe uma bola de chumbo na cabeça, mas tem de continuar com o teatro. Só porque sim, lá respondeu a Iqbal que tem de "cumprir as regras". Não é que o homem não as cumpra, mas para se fingir que se pode ser a solução é preciso inventar um problema.

Vendo as imagens, não é preciso ter filhos para se ficar de coração partido – basta ter-se coração. E o coração revolta-se ao ver a comitiva do Chega atrás, dizendo "Parem de lhe dar palco" e "Ainda existem portugueses neste país". Tudo isto, claro, enquanto se faz campanha por um homem – meu deus, santo deus – que era imigrante noutro lado.

André Ventura é demasiado esperto para acreditar no que diz, o que o torna pior do que se o fizesse – faz dele puro mal, maquiavélico, um homem capaz de cavar onde puder só para meter ao bolso, de manipular o que conseguir só para deixar alguém à nora, de mentir só para lavar a cara, de mentir de novo, sujando-a outra vez, e de fazer da verdade um mero inconveniente, um jogo, um artifício. Ventura é personagem que parece pertencer à ficção – o discurso é uma hipótese, testa-o a ver se dá, e quando A não funciona mete-se por B. Enquanto figura política, é quase inimputável. O seu eleitorado é coisa sem exigência, e ele é o pantomineiro capaz de gritar mais do que os outros – durante mais tempo, com mais histeria, com mais drama. Se é apanhado a mentir, diz-se perseguido. Se é questionado, diz-se esmiuçado. Os outros são todos uns gatunos em busca de o tramar, e ele o coitadinho a lutar contra as injustiças. Enquanto ataca imigrantes, mulheres, homossexuais, transexuais, pobres, pretos, ciganos ou se mete pelo caminho indigno de simplesmente escolher como inimigo público quem não consegue defender-se, faz-se de vítima dia e noite. Se o acusam disto e daquilo – quando ele é, realmente, aquilo e isto –, é um ai-jesus do homem contestado, posto em causa, pequenino para tanto ego, pequenino para o barulho que faz: quem o contesta, diz ele, quer calá-lo; quem o contesta quer limitar-lhe a liberdade de expressão, essa que ele instrumentaliza para baixar o nível da política e da decência em simultâneo.

Tudo isto para avisar o leitor coevo, o meu concidadão: em 2013 (não vai assim há tanto tempo), André defendeu uma tese de doutoramento que parecia o anti-Ventura – ali criticava o aumento do poder policial, ali apontava o dedo à discriminação das minorias, ali punha-se em batalha contra o "populismo penal". Ora, uma tese de doutoramento não se faz em dois dias e Ventura não é burro nenhum: se o escreveu, seria por acreditá-lo, tanto que o fundamentou . Ora, pouco depois, já com pica por holofotes, mandou a crença às urtigas, buscou o que via medrar nas Américas e depois na Europa. Faltava Portugal. Durante muito tempo, muita gente se gabou: neste canto à beira-mar plantado, parecíamos imunes ao populismo rasca, ao ódio que existe só para legitimar quem o sente, à baixaria de se querer dizimar o outro só se para poder encher o

peito. E então deixámos de gabar-nos disto. Afinal, éramos nisso iguais aos outros, o que talvez prove que toda a gente é igual em todo o lado. Bastou a figura: bem-falante, de fato, sem cara de trambolho, distante da imagem jagunça de Mário Machado, do ar skinhead de Nuno Cláudio Cerejeira, a disparar frases como quem tem uma metralhadora nas mãos, sempre indignado para se queixar de qualquer coisa, e oferecendo-se como solução de um problema inexistente. Ora, mesmo quem não via o problema passou a ver a suposta solução. Hoje, Ventura é isso, e é um problema que a democracia tem de resolver – com mais exigência, com mais literacia, com mais decência. A comunicação social levou-o ao colo. Ventura, nisto, é uma espécie de José Castelo Branco – sabe-se que vai dar cliques, dizer a coisa bizarra, e por isso o escrutínio a sério ficou à margem, e o confronto mais ainda. Quando a comunicação social se apercebeu do que por todo o lado se avisava, já não havia nada a fazer. Sim, veio a confrontar Ventura nas últimas eleições, mas o mal já estava feito, a figura já nos entrava nas casas e nos jornais, e o líder do Chega já só queria uma plataforma. Nesta altura, nem escrutinar parecia valer a pena – se era apanhado a mentir, Ventura chorava nas televisões e na Internet a dizer que era injustiçado, incompreendido, a sempiterna vítima das teorias da conspiração. Vários jornalistas, ainda assim, compilavam as incongruências e as mentiras, assim como os absurdos do seu programa eleitoral – de nada valia, o líder do Chega só chorava outra vez. Para isto, muito ajudou a pouca-vergonha do modelo do comentariado, atribuindo notas numéricas a prestações em debates, encarando-as mais como performance do que como proposta ou coerência e favorecendo quem dava espaço ao circo. Com o seu estilo evidentemente mediático, Ventura ia primando pela sua eficácia – a eficácia de falar por cima, de dar espaço à gritaria, de falar de uma coisa quando o assunto era outro. E preparando as respostas como quem prepara vídeos curtos que possam dar cliques nos seus canais próprios de divulgação, esses que não obedecem nem a códigos deontológicos nem aos mínimos da seriedade ou da higiene intelectual, quanto mais da elevação.

De tanto repetir que quer dar cabo dos vilões, Ventura fez matéria da semântica. Por este país fora, muita gente acreditou no bicho-papão que lhe dormia debaixo da cama. E, ao mesmo tempo, acreditou que havia quem pudesse dizimá-lo. A inundação de discurso foi de tal ordem que muita coisa passou ao lado. Repare-se: o Chega começou a apresentar a ideia peregrina de que os imigrantes são um perigo para as mulheres. Ora, não só isto contraria os dados oficiais (de que a criminalidade é mais baixa entre imigrantes), como cria ódio e medo, apontando o dedo a etnias em particular, ou seja, adivinhe-se, pasme-se, a não-caucasianos. E não só o Chega tem entre os seus condenados por violência doméstica (alô, Pedro Alves, cabeça-de-lista por Aveiro) ou por discurso racista (alô, André Ventura) ou por mentir (alô, Pedro Frazão, deputado à Assembleia da República) ou por burla ao SNS (alô, Eduardo Miranda, candidato do Chega por Vila Real nas últimas legislativas) ou por extorsão (alô, João Gomes, membro da assembleia municipal de Braga) ou por matar a tiro uma criança de 13 anos (alô, Hugo Ernano, cabeça-de-lista pelo Porto em 2019) ou, imagine-se, por roubo de esmolas e assaltos (alô, João Silva, candidato por Castelo Branco até se saber disto), como é incapaz de apontar o dedo ao óbvio: vinda de imigrantes ou de nativos portugueses, a violência doméstica, o assédio, a violação, costumam vir das mãos de um homem. Se André Ventura estivesse disposto a combater a insegurança das mulheres ou a criminalidade, teria, no seu discurso, de ter a hombridade – a decência, a cabecinha – de se perguntar por que raio é que aos homens tudo parece permitido. Ele incluído, ou ele em primeiro lugar, uma vez que parece viver na redoma do homem branco medíocre – não tem sequer de responder por si, faz-se tábua rasa das suas intenções, pela sua voz grossa nem sequer é questionado. Pelo meio, lá vai guinchando o que pode, sempre à homem forte, à Schwarzenegger sem bíceps, levando o Chega às costas como leva marionetas que lhe dizem amém a tudo, e canalizando desavergonhadamente o descontentamento com a vida – o salário, a saúde ou mesmo a pequenez do ego – para um resultado eleitoral dependente de uma boa performance. Passados uns dias, já esta dependência parece cocaína e Ventura acelera e grita mais para manter o mesmo estilo.

Em 2024, a luta política já não é debate de ideias. Entrou em campo o elemento do barulho. A discussão, em vez de ser troca de argumentos, busca pela verdade, procura de um caminho, transformou-se na corrida dos decibéis. É também o resultado da insanidade a que conduzem as redes sociais: a velocidade em vez da lentidão, a resposta a correr em vez do estudo, o sim ou o não em vez da justificação. Longe ficaram o debate, a troca de ideias, o mergulho na realidade para lhe ver as vísceras e descortinar caminhos.

Viva Iqbal. Igual a um português que foi para França na década de 60, fugindo a Portugal, só um bangladeshiano que foi para o outro lado do mundo em busca de pão para a mesa. Igual a um português da minha geração, expulso do país durante o governo Passos Coelho, por sugestão do próprio, nessa altura em que André Ventura vivia dos beijinhos que dava ao PSD, só um homem a saber o que é ser estrangeiro na rua onde tem morada. Ao tê-lo em frente, o fundo de humanidade – bem lá no fundo – de André Ventura há-de ter dado de si. Para um homem que se diz tão católico, imagino que no subterrâneo haja pelo menos um nadinha de cristianismo – de bondade, de querer o bem ao outro, de tratar o outro como irmão. Ou talvez não, não sei. Nem importa. Porque, havendo ou não, ali tudo é fachada e depressa o teatro lhe ganhou o espaço à vida, depressa Ventura falou só para não estar calado. Ainda assim, com a evidência à frente – em carne, não em discurso –, lá se conseguiu mostrar de que forma se cala um charlatão verbomaníaco. Durante uns segundos, a vida real baixou a crista ao galifão. Mais crónicas do autor 07:00 Como calar André Ventura

Se André Ventura estivesse disposto a combater a insegurança das mulheres ou a criminalidade, teria, no seu discurso, de ter a hombridade – a decência, a cabecinha – de se perguntar por que raio é que aos homens tudo parece permitido. Ele incluído, ou ele em primeiro lugar, uma vez que parece viver na redoma do homem branco medíocre.

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