www.sabado.ptMaria J. Paixão - 9 jun. 11:05

O paraíso deve ser aqui

O paraíso deve ser aqui

Opinião de Maria J. Paixão

No seu filme de 2019, o realizador palestiniano Elia Suleiman retrata o sentimento de não pertença que se tornou constitutivo da identidade palestiniana. Numa tragicomédia quase muda, Suleiman procura, de Paris a Nova Iorque, um novo lar, apenas para regressar à terra mãe palestiniana. Apesar do tom leve, ‘O Paraíso deve ser aqui’ tem o poder místico de, ao mesmo tempo, causar desconforto, desassossegar e humanizar. Além das questões da violência e da ocupação sublimemente retratadas no filme por via da comédia, a obra de Suleiman destaca-se por nos apresentar uma Palestina que não esperávamos. O filme abre com paisagens solarengas cheias de vida. As oliveiras, os tons dourados e a brisa suave transportam-nos ao Alentejo. O infinito azul ao fundo não pode deixar de tocar a nossa marítima alma lusitana. Essa é, desde logo, uma das fontes de desconforto ao longo do filme – aquela terra palestiniana, retratada como paraíso, não corresponde à imagem pré-concebida no Ocidente.

Sobretudo num momento em que mais de 35.000 palestinianos foram mortos pelo Estado de Israel em sete meses, dos quais cerca de 14.000 crianças, a representação da Palestina que habita o nosso imaginário é de caos e destruição total. Cidades inteiras em pó, betão sobre betão e destroços entre os quais sobressaem pequenos corpos inertes. Só morte, nenhuma vida. Só cinzento, nenhum dourado, verde e azul.

Mas mesmo antes do horror dos últimos meses, do lado de cá do mundo, essa já era a representação dominante. Aquela Palestina que Suleiman retrata foi paulatinamente eliminada da nossa imaginação. A terra palestiniana foi esvaída de toda a vida, das suas oliveiras e brisa quente, para que assim fosse possível desumanizar quem a habita. A oliveira é exemplo paradigmático: símbolo nacional palestiniano, representativo do enraizamento à terra e da longevidade, tem sido, desde o início, alvo preferido da brutalidade israelita. Colonos e militares destroem oliveiras sem nenhum outro objetivo que não seja a destruição simbólica da identidade palestina. Desenraizar a nação palestiniana da sua terra é fundamental para o projeto sionista: por um lado, alimenta a ilusão da terra nulius (terra de ninguém), disponível para ser ocupada; por outro lado, contribui para a pauperização das comunidades palestinianas, fortemente dependentes da atividade agrícola, que assim se veem forçadas a deslocar-se. A campanha israelita contra os oliveirais palestinianos está bem documentada, mesmo na Europa e nos EUA, em publicações tanto académicas como jornalísticas. Igual registo pode ser feito a propósito do desvio de rios e cursos de água, da reiterada destruição das colheitas agrícolas, constantemente arrasadas por tanques, e da depleção dos solos, através da queima, da contaminação e da impermeabilização, com o objetivo de criar "zonas seguras" para os colonos ou de expandir os colonatos.

Muito mais poder-se-ia dizer a respeito da miríade de técnicas utilizadas para quebrar a conexão ancestral entre a nação palestina e a terra. Importa, todavia, sublinhar dois pontos. Primeiro, as práticas aqui referidas têm sido levadas a cabo pelo Estado de Israel, não no território ocupado que lhe foi atribuído pela Resolução 181 das Nações Unidas, que adotou o plano de partição da Palestina (em dois Estados), mas sim em território palestiniano. Tanto os colonatos espalhados por todo o território, como a anexação da Faixa de Gaza, da Cisjordânia e de outros territórios foram considerados ilegais, quer pelas Nações Unidas (incluindo, o Conselho de Segurança), quer pelo Tribunal Internacional de Justiça. Segundo, as práticas aplicadas pelo Estado israelita na Palestina Ocupada não são uma originalidade. Cenários semelhantes verificaram-se, por exemplo, durante as ocupações coloniais das Américas e, mais recentemente, a guerra do Vietname, com a aplicação do infame desfolhante "Agente Laranja".

Um dos mais interessantes desenvolvimentos recentes dentro do mundo do Direito é, precisamente, a discussão em torno do conceito de "ecocídio". O conceito pretende encapsular o tipo de dano ecológico que, em virtude da sua larga dimensão e tendencial irreversibilidade, destrói definitivamente as condições biofísicas de um território.

Recentemente, um grupo de especialistas, tendo analisado a destruição dos últimos sete meses, denunciou o desenrolar de um ecocídio em Gaza, afirmando que a ofensiva lançada por Israel tornou a região inabitável. Os solos e as águas foram contaminados por munições e toxinas. O mar está repleto de resíduos e esgotos. O ar está carregado de partículas tóxicas e de fumo. Cerca de metade dos campos remanescentes foram destruídos. Os investigadores citados pelo The Guardian descrevem o cenário verificado através das imagens de satélite: após os danos causados pelos bombardeamentos aéreos, unidades terrestres do exército israelita desmantelam completamente as estufas e tratores e tanques arrancaram pomares e destroem campos de cultivo. Vários académicos têm, por isso, defendido a abertura de uma investigação por ecocídio, destacando a especial conexão das comunidades palestinianas à terra e ao mar, dos quais depende o seu modo de vida.

Tudo indica que o ecocídio na Palestina, embora agora especialmente notório, tenha longa duração, integrando uma estratégia mais ampla de espoliação, dirigida à criação artificial de uma terra infértil de ninguém, disponível para ser apropriada e cultivada. Nisso reside a profunda tristeza latente na tragicomédia de Suleiman. Para os palestinianos, o paraíso é mesmo ali. Como para cada um nós o paraíso é onde sentimos a terra como casa. A devastação perpetrada ao longo dos últimos 70 anos foi de tal dimensão que, do lado de cá, estranhamos uma Palestina de oliveiras a perder de vista e cheiro a maresia. Mais crónicas do autor 10:05 O paraíso deve ser aqui

Tudo indica que o ecocídio na Palestina, embora agora especialmente notório, tenha longa duração, integrando uma estratégia mais ampla de espoliação, dirigida à criação artificial de uma terra infértil de ninguém, disponível para ser apropriada e cultivada.

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