www.sabado.ptPedro Duro - 9 jun. 12:01

Manjerico

Manjerico

Opinião de Pedro Duro

A desempoeirada não iria desperdiçar o Santo António. Se outros aproveitavam para umas miniférias, julguei certo e sabido que ela me iria arrastar pelas ruas de Lisboa, entre o cheiro a sardinhas, os empurrões, a cerveja que se entorna e a música.

Estava tudo organizado. O grupo seguia o ritual que se impunha no sábado anterior à festa do padroeiro, com jantar no mesmo restaurante, menu a honrar as tradições e amizades que sabiam rever-se ao menos uma vez por ano. O dono era cúmplice e familiar de uma das comensais, pelo que a reserva era garantida, com um núcleo irredutível e duas camadas mais ou menos flutuantes: a dos cooptados por namoro ou casamento; a dos filhos, enquanto outras jantaradas não os levassem.

Toda ela cantava enquanto passeava pela casa. Olhava-me com a alegria provocadora que convida a sair da casca. E eu saía, desempoeirando-me com a desempoeirada.

Não conhecia ninguém. A nossa relação era recente, mas intensa. Com as miúdas foi fácil. Não aprovaram nem deixaram de aprovar. Bastava-lhes ver-me feliz. Eu tomei como aprovação. De trato ligeiro, o "ainda por cima, dá-se com as miúdas" era cereja no topo do bolo desta minha fabulação de um amor perfeito. Agora ia saber se me dava bem com os amigos, se me aprovariam, apesar do meu estilo mais reservado, de não ter nascido para rei da festa. Pelo menos, não disputaria palcos – no teatro social o meu lugar preferido era a plateia.

Com um ligeiro atraso, chegámos a Arroios. A entrada vestira-se de arco engalanado como se estivesse pronta a marchar pela Avenida da Liberdade. E o interior surpreendia num ecletismo quase herético: imagens do Eusébio, do José Águas, do Nené ou do Coluna conviviam com as do Fernando Gomes, do Madjer, do Deco ou do Jardel. Entre águias e dragões, entre o vermelho e o azul, fazia-se um restaurante com alusões ao padroeiro de Lisboa e à festa maior do Porto. Os manjericos uniam o Santo António e o São João. Quadros com alhos-porros e raminhos de oliveira eram ladeados por mais modernos martelinhos. Memórias de casais que abençoaram a união a 13 de junho também se apresentavam nas paredes, com imagens assinadas pelos dois, dando esperança aos que já desanimavam com o moderno "nada é para sempre". Um ou outro São Pedro não bastava para disfarçar o restaurante que não era verdadeiramente de todos os santos, mas de um amor que se fazia da soma de duas paixões.

Apaixonado pelo Porto, o antigo combatente gostava de provocar o "mouro" que se fez companheiro de armas. Discutiam futebol com a mestria dos grandes treinadores de bancada. Emboscados, foram a melhor equipa, agarraram-se à vida e para a vida ficaram amigos, regressando de uma guerra que nunca quiseram com memórias que, juntos, foram menos difíceis de suportar. O amigo lisboeta, além do mais, era um irmão protetor e orgulhoso. De uma mulher linda, mas tão benfiquista como ele. E, assim, o Porto casou-se com Lisboa, com a bênção de águias e dragões, dos santos e dos seus feriados, do que mais tivesse de ser.

Em Arroios, a festa era um norte e sul que enchia o restaurante com uma história deliciosa. Até o memorial mostrava ternura feliz, mais do que luto amargurado, com a fotografia dos três e a saudade do irmão e cunhado já falecido.

Fomos dos primeiros a chegar. Apenas o casal organizador já lá estava. Há anos que tratavam de tudo, entretanto com as facilidades de um grupo no WhatsApp. Os lugares tinham pequenos cartões com os nomes. Os novatos tinham direito a uma provocação, em antecipação do 13 de junho: dois manjericos em frente aos pratos de cada casal, obrigando a uma oferta recíproca e à promessa de durarem para lá do outono. Rezavam-se lendas sobre os que souberam cuidar dos manjericos ao ponto de, passados tantos anos, já não se saber quem tinha chegado ao grupo por empréstimo. Encenavam-se rábulas dos maiores atos falhados de quem caiu de paraquedas naquela festança.

O casal azul e vermelho circulava por ali enquanto os empregados asseguravam que tudo fluía como a seleção nacional nos seus melhores momentos. E as pessoas iam chegando. Uns mais fechados, outros efusivos. De uma forma ou de outra, surgia um: "Finalmente! Vamos conhecer o homem de quem se fala!"

Fala? Por que haveria de se falar? Claro que se falava! Ela orgulhava-se de nós e não guardava a história do nosso amor para a certeza de uma ecografia de fim de tempo.

Trocámos manjericos como quem promete jantar ali no ano seguinte. E as cervejas, os vinhos, as sangrias aterravam perigosamente numa mesa que convidava a misturas. Todos se conheciam de longa data. Acolhedores, não me conseguiam impedir de ser um peixe fora de água. Mas lá me fui ambientando, cansado por me esquecer de nomes, mas rindo-me dos contadores de histórias, essas figuras sempre presentes que marcam as lembranças de qualquer refeição.

Ainda sugeri guardar os manjericos em sacos ao pé da mala. Ideia tonta, pragmática e que não ia permitir a desempoeirada encostar a mão para roubar o cheiro. Conformei-me com o "logo se vê" e deixei-me levar pelo evento das memórias, pelo palco das atualizações, por eles que me adotavam aos poucos; porque "nós gostamos muito desta menina!". E, se ela gosta de mim…

Cantámos, rimos. Os que nasceram banhados no elixir da eterna juventude seguiram para a noite como quem ainda frequenta as festas dos caloiros. Eu e a desempoeirada cedemos ao cansaço e preparámo-nos para o caminho.

Recolhi o manjerico, estrategicamente a salvo num canto que fui vigiando à distância. O dela foi ficando na mesa. Fui até à casa de banho de onde ela saiu.

«Pegas no meu manjerico? Também tenho de ir. E não te esqueças de ir buscar o teu.»

«Pois é…» – respondeu, meio distraída, meio tocada.

Demorou.

Voltou.

«Não o encontro. Alguém deve ter levado por engano».

Não tinha importância, mas peguei no manjerico que me cabia cuidar. Tinha de durar pelos dois.

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