expresso.ptPedro Pinheiro - 7 jun. 11:39

A aposta populista do BE

A aposta populista do BE

Quando um populista de esquerda quer falar em tolerância, primeiro deslegitima o Outro “excluindo” e só depois determina o que ele tolera para incorporar na nobreza “inclusiva” do seu povo

De acordo com John Judis, o populismo «não é uma ideologia, mas antes uma lógica política, uma maneira de pensar sobre política» e, em segundo lugar, é um fenómeno que funciona frequentemente como alarme de uma crise. O populismo usa todos os meios para tocar os sinos pavlovianos e assinalar que a política predominante não está a funcionar. Enquanto salivamos, impõe a ideia de que não há alternativa: são necessárias medidas profundas e imediatas para impedir o desmoronamento da democracia.

Antes de Judis, Ernesto Laclau também via no populismo uma simples lógica política através da qual se constrói um povo nobre (moralmente superior e não limitado pela classe social) que combate uma elite (corrupta e antidemocrática). Laclau, procurando criticar e superar o pensamento marxista, recebe de Chantal Mouffe – autora que propôs um populismo de esquerda em 2018 e que estabeleceu um contacto estreito com o Podemos, o Syriza e Mélenchon – a teorização de uma democracia agonística. É a partir de Mouffe que Laclau critica democratas liberais, como Lefort, para quem a democracia moderna nasceu com a revolução democrática lembrada por Tocqueville. Para Laclau, a democracia liberal não é suficiente para realizar a democracia: um regime democrático pensado enquanto governo baseado num estado de direito (cujo desígnio é defender direitos individuais e igualdade com base numa estrutura preponderantemente racional) esquece o povo e as emoções. Mais, o populismo não é totalitário: é potencialmente democrático.

Esta nota serve para que compreendamos a complexidade do fenómeno populista e não o demonizemos imediatamente. Nesta senda, podemos dizer sem riscos de demonizar ninguém, que a campanha do BE para as europeias segue uma lógica populista. Entre o discurso do BE e a proposta populista de esquerda de Mouffe verificam-se traços comuns (algo que não é novo): (1) há uma direita populista que cresce através do uso das emoções e que deve ser combatida com os mesmos meios, ao contrário do que tem feito a esquerda tradicional e racionalista; (2) é necessário construir um povo através duma estratégia discursivo-afetiva que articule a heterogeneidade de demandas dos grupos oprimidos no atual contexto neoliberal.

De facto, Catarina Martins elege um adversário político, demoniza-o e chega a secundarizar a resposta às questões que lhe colocam (não estamos a verificar se o adversário é moralmente mau ou esteticamente feio). Esta postura demonstra-se também no trabalho retórico que a candidata faz para amalgamar constantemente tudo o que está (supostamente) à sua direita e alarmar para o perigo existencial que isso representa. Trata-se de uma abordagem populista por entender que a política é necessariamente feita em contexto de confronto para o qual é necessário um ‘nós’ e um ‘eles’. Em boa verdade, expressa-se como carente de um ‘eles’ que define negativamente um ‘nós’, ou seja, sem um ‘eles’ demonizado esta estratégia discursivo-afetiva não consegue construir um ‘nós’, um povo do populismo de esquerda.

O segundo traço referido, que ecoa a abordagem marxista na qual a história é a luta entre oprimidos e opressores, verifica-se no apelo ao voto das mulheres e consequente demonização de um adversário político imaginário: não é a direita (nem o PS) que pode falar de direitos das mulheres; «a direita está a transformar-se num exército de guerra contra as mulheres.» A economia deste discurso baseia-se no pressuposto identitário de que a sociedade é definida por grupos imutáveis que são articulados ou combatidos no discurso. Nesta senda, o BE destas europeias homogeneizou o significante “mulheres” e apoderou-se dele concedendo-lhe a identidade de vítima oprimida.

A consequência, como aponta Yascha Mounk na observação de episódios políticos semelhantes, é uma resposta irrefletida: a necessidade de incorporarmos a nossa identidade (sexo, nacionalidade, raça, orientação sexual, etc.) para pensar politicamente, em vez de promover a procura por universais humanos (tipicamente liberais e alheios à identidade de cada um), promove a falsa crença de que o conhecimento reside simplesmente na experiência vivida e nas emoções, gerando uma tendência para o agrupamento de supostos excluídos não comunicantes com o diferente. Neste sentido, a adoção de uma retórica identitária é um falso agonismo político: em vez de confrontar, a estratégia política passa a ser a de deslegitimar. Promove-se o fechamento das sociedades e contraria-se a inclusão de que se gaba a retórica populista de esquerda.

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Os populistas têm legitimidade para tal? Sim, têm toda a legitimidade. Importa que também tenhamos legitimidade para apontar quando um discurso é populista e quando este se alimenta de uma estratégia de alarmismo deslegitimador.

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