Bruno Vieira Amaral - 23 mai. 12:59
Palavra da semana #81: Pode
Palavra da semana #81: Pode
Com uma só palavra, o Presidente da Assembleia da República contribuiu mais para a liberdade de expressão do que muitos dos que o atacaram. Pode é uma palavra poderosa
Afinal, pode ou não pode? Não, não pode, dizem uns. Ai, pode, pode, dizem outros. O quê? Tudo. Uns acreditam que à irresponsabilidade criminal dos deputados corresponde uma responsabilidade máxima. Outros acham que se é para ser irresponsável então vale tudo. Menos arrancar olhos. Ou talvez até valha arrancar olhos. Metaforicamente, bem entendido. O problema são os mal-entendidos. E qual o entendimento que deve prevalecer. Para bom entendedor, meia palavra basta. Para os que se fazem de desentendidos, nem vários tomos de regras e regulamentos chegam. Em que é que ficamos?
Depois do estilo interventivo e professoral de Augusto Santos Silva, a quem só faltava a menina de cinco olhos para pôr os deputados do Chega na ordem, a Assembleia da República ainda se está a adaptar ao “laissez-faire, laissez-parler” de Aguiar-Branco. O Presidente da Assembleia da República não está muito inclinado para passar o tempo a repreender os deputados e as deputadas que se portem mal ou que se excedam na linguagem. Talvez seja um otimista antropológico. Ou um pessimista que considera fúteis todos esforços para travar a cavalgada da ignorância. Ou um Bartleby que, instado pelos partidos a admoestar certos deputados, responde com um “preferia não o fazer.”
Estou do lado de Aguiar-Branco. Desde logo por questões estéticas. O Presidente da Assembleia da República tem ar de médico indiferenciado, um daqueles falsos clínicos que aparecem nos anúncios a pastas de dentes e aos comprimidos de mangustão. Se nos déssemos ao trabalho de procurar, seria fácil encontrarmos uma fotografia dele num banco de imagens com a legenda “médico de clínica geral particularmente apto para promoção de clínicas de implante capilar”. E esta aparência genérica coaduna-se com as funções eminentemente decorativas do que alguns, com rigor legalista e excesso de pompa, insistem em designar como “a segunda figura do Estado”.
Ora, a segunda figura do Estado é, como a própria designação indica, secundária. Substitui o chefe de Estado se este tiver de ser operado de urgência a uma apendicite ou sofrer uma reação vagal, mas no resto do tempo o que interessa é se a segunda figura do Estado senta confortavelmente na cadeira que lhe está reservada no plenário, se não destoa da cor dos móveis e se é capaz de conduzir os trabalhos como os árbitros mais qualificados gerem os jogos de futebol, sem que se dê por eles. Ora, parece-me evidente que Aguiar-Branco cumpre todos estes critérios e só não digo com distinção porque isso seria uma contradição. É por cumprir os critérios sem particular distinção que ele é o homem certo.
É, pois, uma maldade que a este homem de vocação adjunta se obrigue a vestir o traje de paladino da liberdade de expressão e a apresentar aos líderes parlamentares um documento pomposamente intitulado “Liberdade de Expressão: uma superliberdade de proeção máxima e de restrição mínima” que se arrisca a figurar na história ao lado de John Stuart Mill e do seu “Da Liberdade de Pensamento e de Expressão.” Sem querer negar a Aguiar Branco o direito inalienável a registar por escrito e para a posteridade o produto da sua filosofia, atrevo-me a dizer que, por muito que venha a escrever, o seu contributo para esta discussão resume-se a uma palavra, breve mas poderosa: “pode.”
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