expresso.ptJoana Oliveira - 16 mai. 07:00

A alimentação pode salvar o planeta

A alimentação pode salvar o planeta

Falar do que produzimos e comemos ainda é um tabu, que se intensifica quando o assunto se prende com a trajetória atual da produção e consumo de carne, que é, simplesmente, insustentável

Os recentes episódios de chuvas intensas e inundações no Rio Grande do Sul, no Brasil, estão a dar visibilidade às consequências tangíveis das alterações climáticas, evidenciando como estas já interferem nos padrões meteorológicos atuais. Um estudo recente confirmou que as alterações climáticas, resultado da atividade humana e associadas ao aquecimento global, aumentaram a intensidade das chuvas no Rio Grande do Sul em aproximadamente 15%, sendo que a maior parte das emissões de gases com efeito de estufa no Brasil provém da desflorestação e de atividades agrícolas.

Para ter qualquer esperança em limitar o aquecimento global a 2°C, ou menos, as emissões de gases com efeito de estufa devem ser reduzidas consideravelmente, mas, mesmo que as emissões de combustíveis fósseis fossem eliminadas, as emissões do sistema alimentar global dificilmente permitiriam alcançar esse objetivo de 2°C.

Contudo, a generalidade das discussões políticas relacionadas com as mudanças climáticas subestimam o impacto dos sistemas alimentares, responsáveis por um terço das emissões antropogénicas globais de gases com efeito de estufa e que têm contribuído para alguns dos maiores e mais graves desafios enfrentados pela humanidade, incluindo as alterações climáticas, os danos ambientais, a insegurança alimentar, a perda de biodiversidade e o impacto na saúde pública. A perda de saúde humana e o prejuízo planetário associados ao sistema alimentar ultrapassa os 9 triliões de euros por ano, superando mesmo a sua contribuição para o PIB global. Em suma, os nossos sistemas alimentares estão a destruir mais valor do que a criar.

Mas falar do que produzimos e comemos ainda é um tabu, que se intensifica quando o assunto se prende com a trajetória atual da produção e consumo de carne, que é, simplesmente, insustentável. As emissões de gases com efeito de estufa provenientes da pecuária, na União Europeia (UE), causam mais danos ao clima do que todos os automóveis e carrinhas juntos. No entanto, enquanto que os impostos sobre o transporte são a segunda maior fonte de receita fiscal ambiental na UE, os produtos de origem animal, responsáveis por 84% das emissões de gases com efeito de estufa incorporadas na produção alimentar da UE, têm ganho força graças aos fundos públicos, recebendo 82% dos subsídios agrícolas europeus (38% diretamente e 44% para alimentação animal).

A agricultura, que inclui tanto a produção de alimentos de base vegetal como de origem animal, é frequentemente tratada como um conjunto, independentemente do tipo de produção, nas análises que envolvem o impacto do sistema alimentar. Sabemos, por exemplo, que a agricultura representa cerca de 10% das emissões de gases com efeito de estufa na UE (excluindo alterações de uso de terra e produção de ração animal), mas a pecuária é responsável por 70% destas emissões, logo seria de esperar que a criação de animais fosse tratada isoladamente quando o objetivo é a mitigação do impacto ambiental, o que não acontece.

A agricultura é a principal fonte antropogénica de emissões de metano, um gás cujo impacto pode ser mais danoso do que o impacto do dióxido de carbono, uma vez mais devido, em grande parte, à pecuária (responsável por 32% das emissões de metano da agricultura). Num período de 100 anos, o metano tem um potencial de aquecimento global superior em 28 vezes ao do dióxido de carbono, chegando a ser 84 vezes mais potente num período de 20 anos. O metano é responsável por aproximadamente 30% do aquecimento global e, atualmente, está a proliferar mais rapidamente do que em qualquer outro momento desde o início dos registos na década de 1980. A criação de animais é também responsável por emissões consideráveis de amoníaco e óxido nitroso.

Se procurarmos quantificar o impacto ambiental atribuído à produção e consumo de alimentos de origem animal, na UE, as pesquisas estimam que pode ser de 407 mil milhões de euros e 358 mil milhões de euros, respetivamente.

Assim, se os consumidores pagassem um valor que refletisse os impactos das emissões de gases com efeito de estufa ao adquirirem produtos de origem animal, teriam que pagar significativamente mais, estimando-se um aumento de até 146% em relação aos preços atuais.

A pecuária contribui substancialmente para muitos dos desafios ambientais mais prementes do nosso tempo, incluindo não só a emissão de gases com efeito de estufa como também para a sobre-exploração dos recursos hídricos e do solo e perda de biodiversidade.

A expansão das pastagens para a criação de bovino para consumo, por exemplo, é responsável por 41% da desflorestação tropical. Por sua vez, a soja foi responsável por 31% da desflorestação tropical “importada” pela UE, entre 2005 e 2017, perfazendo uma média de 89 mil hectares por ano. Apesar de ainda ser comum associar erroneamente o impacto ambiental da soja a alimentos como tofu e bebida de soja, mais de três quartos (77%) da soja é usada, a nível global, na ração de animais. O europeu médio consome 61 kg de soja por ano, maioritariamente através do consumo de produtos de origem animal (90%).

O consumo excessivo de proteína de origem animal na Europa está associado a sérias consequências climáticas e ambientais, e Portugal destaca-se não apenas como um dos países europeus que consome mais carne e o que tem maior pegada carbónica alimentar, mas também como o país europeu mais impactado pelas alterações climáticas. Este cenário não nos deveria surpreender, considerando a familiaridade que temos vindo a ter com temas como seca, desertificação, fogos florestais, erosão costeira (devido à elevação do nível do mar), tempestades e diminuição da produtividade agrícola nacional, frequentemente abordados na comunicação social do nosso país.

Em Portugal, o consumo médio anual de carne, por pessoa, aumentou de 114,5 quilos, em 2021, para 118,5 quilos, em 2022, o que representa cerca de 300 gramas por dia, ou seja, consome-se cerca de 10 vezes mais carne por dia do que o recomendado.

Como exemplo, mesmo nas escolas portuguesas, um local que deveria ser precursor de uma alimentação sustentável e saudável entre os mais novos, o fiambre, uma carne processada, é a opção de recheio do pão mais disponibilizada (93,2%). Seria de esperar que, para além das preocupações ambientais, as compras públicas e a oferta escolar prestassem especial atenção às evidências científicas que demonstram que o consumo de carnes processadas e carne vermelha está associado a um maior risco de desenvolvimento de diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares, cancro (em particular, colorretal) e morte prematura. A produção atual de produtos de origem animal também aumenta os risco de resistência antimicrobiana e de doenças zoonóticas. Quase todos os aspetos da criação intensiva de animais contribuem para condições de propagação de doenças – animais excessivamente stressados, que vivem em condições muitas vezes sórdidas, em espaços apertados e em contacto regular com trabalhadores humanos.

A atual criação de animais para consumo humano agrava, igualmente, a insegurança alimentar ao estar diretamente ligada à ineficiência do uso das terras agrícolas. Por outras palavras, a pecuária está a diminuir a disponibilidade de alimentos, com base nos atuais recursos naturais, em relação ao seu potencial máximo.

Quando alimentamos um animal, nem toda a energia é utilizada para produzir carne, leite ou ovos. A maior parte é usada apenas para manter o animal vivo.

Por exemplo, a carne de porco, que é aquela mais consumida em Portugal, tem uma eficiência energética de cerca de 9%. Isso significa que, por cada 100 quilocalorias que se alimenta um porco, apenas se recebe de volta 9 quilocalorias de carne. O frango, por sua vez, tem uma eficiência energética igualmente baixa, de cerca de 13%, lembrando que mais de um terço da soja mundial é destinada à alimentação de galinhas e outras aves.

A atual produção alimentar seria, na verdade, suficiente para alimentar a população mundial de forma saudável, se todos desperdiçassem menos e passassem a ter uma alimentação de base vegetal, o que libertaria 75% das terras agrícolas.

Mas, mais uma vez, Portugal parece afastar-se das evidências científicas na sua prática agrícola, mesmo que, em parte, esteja sujeito a decisões tomadas a nível da UE. No nosso país, produz-se 78% do consumo interno de “carne e miudezas” mas apenas 14% e 18% das leguminosas e dos cereais que os cidadãos do país consomem, respetivamente. Estas diferenças de produção evidenciam ainda mais a ineficiência do sistema alimentar português, se pensarmos que os produtos de origem animal precisam de alimentos de base vegetal para serem produzidos. No entanto, em sentido contrário a uma lógica de eficiência, o Plano Estratégico português da Política Agrícola Comum chega a defender a produção de carne ao referir no seu documento oficial: “(...) a solução de redução contínua de efetivos [animal] contraria outros objetivos de política, igualmente relevantes, como a segurança alimentar, que devem ser tidos em conta.”

A transição para uma alimentação de base vegetal é fundamental para mitigar os impactos ambientais e de saúde associados à produção e ao consumo de carne. Esta mudança requer não apenas ações individuais, mas também intervenç��es políticas e regulatórias que levem em conta os verdadeiros custos ambientais, éticos e sociais da alimentação, promovendo a produção e o consumo de alimentos de origem vegetal.

Leguminosas, como feijão, ervilhas, tremoço e lentilhas, destacam-se em múltiplos aspectos que as tornam verdadeiras estrelas na transição para uma alimentação mais sustentável. Para além da sua impressionante capacidade de fixar o azoto atmosférico, que aumenta a fertilidade do solo, estas culturas emitem apenas entre 1 a 2 kg de equivalentes de dióxido de carbono, por cada quilograma, uma fração ínfima comparada com a carne de bovino, que emite até 100 kg de equivalentes de dióxido de carbono.

O rendimento de proteína das leguminosas, por unidade de área cultivada, é excepcionalmente elevado, superando o que seria obtido através da criação de muitos dos animais de pecuária. Esta característica permite uma utilização mais inteligente e eficiente das terras agrícolas.

A Organização Mundial da Saúde tem vindo a destacar as leguminosas como uma alternativa à carne, realçando o seu papel crucial na construção de dietas futuras que sejam saudáveis para as pessoas e sustentáveis para o planeta.

A pensar nos desafios climáticos associados ao sistema alimentar, a ANP|WWF, a Associação Portuguesa de Educação Ambiental, a Associação Alimentar Cidades Sustentáveis, a Associação Vegetariana Portuguesa, o GEOTA, a Quercus e a ZERO publicaram uma Carta Conjunta, dirigida ao Governo português, que destaca a necessidade urgente de uma mudança para um sistema alimentar mais sustentável e saudável em Portugal.

O documento, que já conta com mais de 450 signatários ligados ao ambiente, enfatiza os desafios das mudanças climáticas e da saúde pública, associados ao sistema alimentar, e propõe a implementação de um Plano Nacional da Proteína Vegetal, juntamente com uma série de medidas específicas para promover o setor de base vegetal em Portugal: a criação de um Fundo Nacional para Alimentos de Base Vegetal; o alívio fiscal para todas as leguminosas (e derivados saudáveis), hortícolas e frutas; a promoção da produção local de leguminosas; o investimento em pesquisa e desenvolvimento para o setor de base vegetal; a alocação de verbas para sessões de formação às equipas de cozinha das cantinas públicas e a promoção do consumo de alimentos de base vegetal via diretrizes oficiais e em coordenação com profissionais de saúde.

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