expresso.ptJosé Carlos de Oliveira - 15 mai. 07:02

Carta a Garcia (II): e agora?

Carta a Garcia (II): e agora?

Já não é tempo de aguardarmos o julgamento da História, antes disso estamos cá nós, os que aqui fazem os filmes que nos tocam, os que os vêem e os que ainda os virão ver

Não conheço ou não me recordo de nenhum construtor de filmes mais Apolíneo do que Dionisíaco. Tudo, sanitária e criativamente, começa em Dionísio, em busca de Apolo. Este é um percurso que se constrói a partir do caos, do perigo e do inesperado, para atingir o edifício final da perfeição, mesmo que subjectiva e impossível. Do princípio ao fim, este caminho, salutarmente inevitável, pela sua complexidade e custos que envolve está obrigado a utilizar uma linha de produção preenchida por criativos e técnicos estruturalmente organizados para a obtenção de um objecto fílmico a ser projectado via Grande-Ecrã ou TV – em que a percepção dos públicos e da crítica tem de ser devidamente percebida por todos os que o construíram.

Já pouco antes do sonoro no Cinema, Louis Delluc (1890-1924) soube não só perceber como avisar que a popularização desta arte tinha passado a exigir, também, uma estrutura industrial, por isso simultaneamente potenciada e condicionada por ela, a indústria.

Passado um século, e apesar dos resultados que no nosso país vamos obtendo, ainda há quem, prevalentemente, olhe o imperativo da produção desta arte industrial como algo decorrente da noblesse oblige; em lugar de objecto genuíno das artes e da economia que influencia – mesmo quando desanima e muito mais quando deslumbra – e que projecta para o mundo, e cá, formas de olhar e representar quem nós somos.

Um mosaico de complexidades, a que os países por todo o mundo tentam responder, uns melhor outros não tanto, através de uma plataforma estatal de intervenção que, no caso português, se chama Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA). A tarefa é imensa, mais ainda quando a resposta tem de ser, também, imensa. Chamando por isso o Governo a dar suporte político à reforma estruturada no Plano Estratégico ICA 2024-2028, homologado pelo despacho N.º 79/2024/MC; promover a reforma dos regulamentos do ICA; fechar e aplicar o Contrato de Concessão de Serviço Público da RTP – pasta transitada agora para o Ministro dos Assuntos Parlamentares, Pedro Duarte; coordenar a actuação da Film Commission; assegurar a estabilização normativa e financeira do PIC/Cash Rebate – que elege despesas pagas pelo produtores, ressarcindo parte delas; rever urgentemente a disparidade entre a facturação das Plataformas de streaming, como a Netflix em Portugal, e o volume, até agora desanimador, dos investimentos na produção portuguesa.

Este percurso evidentemente acidentado, em que a só a obstinação tem conseguido fazer-nos prevalecer, precisa de um Governo sem complexos e de um ICA com suporte político que lhe permita reformar, moralizar, escrutinar e aconselhar intervenções à tutela.

Não haverá pausa para os empenhados; mas já não é tempo de aguardarmos o julgamento da História, antes disso estamos cá nós, os que aqui fazem os filmes que nos tocam, os que os vêem e os que ainda os virão ver.

José Carlos de Oliveira escreve de acordo com a antiga ortografia.

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