expresso.ptJosé Soeiro - 15 mai. 20:02

Privatizar os cuidados para idosos e crianças: alguém reparou?

Privatizar os cuidados para idosos e crianças: alguém reparou?

É este mercado privado de cuidados, financiado pelo Estado, que deu resultados trágicos noutros países, como França, que o governo pretende agora criar em Portugal na resposta aos idosos. Por outro lado, no sistema educativo, passaremos a ter uma componente privatizada, de creche e pré-escolar

Não tem merecido debate público, mas é uma mudança paradigmática trazida pelo programa do atual governo da AD. No que diz respeito às respostas sociais para pessoas idosas, o programa pretende “alargar o número de vagas comparticipadas nas respostas sociais dirigidas a idosos” e “estender ao setor privado essa comparticipação quando a rede pública ou social não dão resposta” (Programa do XXIV Governo, p. 23). No que concerne às respostas às crianças, propõe o governo “garantir o acesso universal e gratuito às creches e ao pré-escolar, mobilizando os setores público, social e privado” (p.8), repetindo depois que o objetivo é “alargar o programa de creches gratuitas à rede pré-escolar, mobilizando os setores público, social e privado” (p. 24) sendo que o alargamento de creches e pré-escolar se concretiza não apenas “aumentando a capacidade da oferta do Estado”, mas também “contratualizando com o sector social, particular e cooperativo” (Programa do XXIV Governo, p. 106).

A rede de respostas sociais comparticipadas pelo Estado sempre foi, no Portugal democrático, um monopólio do setor não lucrativo. Por algum motivo se definiu que essa rede - que integra 10.680 respostas sociais servindo 118.260 crianças em creches e 280.448 pessoas idosas a frequentar centros de dia, lares de idosos e a beneficiar de apoio domiciliário - não teria a participação do setor privado lucrativo. Ao contrário do que acontece noutros países, o Estado não financia empresas que fazem da prestação de cuidados sociais o seu negócio e a sua fonte de lucro.

No caso dos idosos, há um “mercado grisalho” que suscita enormes apetites de empresas privadas. Em Portugal, o mercado legal não tem florescido ao mesmo ritmo que noutros países, porque as respostas lucrativas, que não são comparticipadas pelo Estado, têm preços proibitivos (por exemplo, instituições a cobrar 2.500 euros por mês, ou mais), só acessíveis a uma pequena minoria de idosos com rendimentos. A dimensão mercantil que cresceu foi um setor clandestino, do qual fazem parte, segundo as estimativas, cerca de 3500 lares ilegais, os únicos que muitas pensões baixas podem pagar e onde a qualidade dos cuidados não é escrutinada.

Faz sentido acabar com o monopólio do setor social nas respostas sociais? Sim, se for para somar uma rede pública à rede de respostas já existente no setor social, através dos acordos de cooperação. Essa provisão direta pelo Estado poderia colmatar as lacunas que existem (por exemplo, menos de 13% dos idosos têm acesso a uma resposta social). Ou seja, serviria para criar um novo pilar do estado social, um verdadeiro Serviço Nacional de Cuidados. Este é, de resto, um debate em curso em vários países, do Reino Unido ao Uruguai.

Já as experiências internacionais de mercantilização dos cuidados para idosos não têm dado resultados positivos.

Em Espanha, na Grã-Bretanha ou na Alemanha, por exemplo, uma percentagem significativa dos cuidados a idosos estão entregues a empresas lucrativas. Há grandes multinacionais que têm tentado abocanhar esse mercado, sempre com rendas provenientes do erário público, e com uma gestão das instituições que não garante a qualidade da resposta e os direitos das pessoas mais velhas. São empresas como a Orpéa, cujo preço das ações duplicou desde 2015; ou a Korian, que segue em segundo lugar neste mercado e anunciou recentemente novas compras de instalações em Itália e no Reino Unido; ou a DomusVi, sediada em França.

O caso da Orpéa, líder global no setor dos lares, com uma rede de mais de mil estabelecimentos em 23 países, é especialmente chocante. Em França, onde esta empresa tem duas centenas de lares, o jornalista Victor Castanet publicou um livro a denunciar as práticas da Orpéa, com redução de profissionais, racionamento de medicamentos, de alimentos e de produtos de saúde, além de manipulações financeiras. O livro, com o título “Os Coveiros” (“Les Fossoyeurs”, em francês), revelou, com inúmeros documentos e 250 testemunhos, como a gestão empresarial e as práticas de “otimização financeira” puseram em causa os mais elementares direitos dos idosos, com maus tratos a utentes e a profissionais. O grupo chegou a oferecer 15 milhões para que este trabalho não fosse publicado.

Ora, é este mercado privado financiado pelo Estado, que deu resultados trágicos noutros países, que o governo pretende agora criar em Portugal no cuidado de idosos.

A situação das creches é um pouco diferente. Neste caso, a porta aos privados estava aberta, mas em moldes distintos. Quando, respondendo a uma exigência das esquerdas, o governo do PS avançou com a medida das creches sem custos para as famílias, inaugurou uma política muito positiva de acesso gratuito no campo das respostas sociais. Só que, sem uma rede pública que reforçasse a oferta, restavam as vagas do setor social com acordo de cooperação com a Segurança Social. Como estas não eram suficientes, e o governo não quis criar uma rede de provisão direta pelo Estado, alargou a possibilidade de financiamento do Estado a creches privadas sempre que, num dado território, não houvesse vagas do setor social e solidário. Essa medida de alargamento, enquadrada como solução provisória e subsidiária, passará agora, de acordo com o novo governo, a política estrutural. E uma vez que o governo pretende integrar as creches no sistema educativo, passaremos então a ter uma componente da educação pública que será privatizada. Como alertou Paulo Pedroso num artigo recente, “abre-se a uma lógica de mercado o desenvolvimento da oferta, não apenas das creches, mas também do pré-escolar”, a qual “se for concretizada, subverte a lógica de cooperação entre Estado e setor social, hoje predominante nos cuidados à infância e subverte a lógica da primazia da oferta pública, que hoje governa a educação de frequência universal e gratuita”.

Nos dois casos, é uma mudança de paradigma, que merece amplo debate público. E oposição.

NewsItem [
pubDate=2024-05-15 21:02:35.348
, url=https://expresso.pt/opiniao/2024-05-15-privatizar-os-cuidados-para-idosos-e-criancas-alguem-reparou--abd3c167
, host=expresso.pt
, wordCount=939
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2024_05_15_11131629_privatizar-os-cuidados-para-idosos-e-criancas-alguem-reparou
, topics=[opinião]
, sections=[opiniao]
, score=0.000000]