www.sabado.ptCatarina Caria - 14 mai. 17:57

Friends, Anarquia e Antissemitismo

Friends, Anarquia e Antissemitismo

Opinião de Catarina Caria

Esta semana sentei-me à conversa com o Professor João Pereira Coutinho. O maior desafio foi mesmo evitar começar todas as frases por "Professor". É verdadeiramente difícil não cunhar o título que tantas vezes empreguei nos corredores da Universidade Católica.

João Pereira Coutinho é doutorado em Ciência Política e Relações Internacionais pelo Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, onde é Professor Associado. Tem dedicado a sua investigação à História do Pensamento Político Moderno, em geral, e à História do Pensamento Político Conservador, em particular. É ainda autor de Conservadorismo e Edmund Burke: A Virtude da Consistência.

Começámos a conversa com um tema leve - o das reparações às ex-colónias. Para o João, "uma coisa é lamentar a nossa História e reconhecer que, como a história de qualquer país, a nossa é feita de momentos gloriosos e momentos pavorosos. Outra coisa é partir do princípio que a culpa é uma espécie de doença hereditária que se passa de geração em geração."

Deveremos carregar connosco o pecado original da escravatura? O João acredita veementemente que viver numa democracia liberal, que se sustenta em princípios como a autonomia e a responsabilidade individual, nega que a culpa é hereditária - "A ideia de reparar aquilo que foi provocado pelos contemporâneos parece-me um contrassenso e uma negação dos valores que sustentam uma democracia liberal."

Perguntei-lhe se as palavras do Presidente da República não seriam peças de um jogo de sinalização de virtudes políticas. João respondeu-me entre sorrisos que "quem muito sinaliza a virtude, pouca virtude tem", até porque, como dizia Aristóteles, a virtude é tímida.

Falámos também sobre a passadeira vermelha que André Ventura tem à sua disposição e que o aproxima, cada vez mais, do poder.

Se tivesse de escrever um livro sobre como ser um populista, João admite que mapearia todos os temas que não são tratados seriamente pelos partidos estabelecidos no regime (nomeadamente os da segurança, migração e corrupção). De seguida, João escutaria, atentamente, o que pensam os cidadãos sobre estes temas, até porque, como diz, "o líder populista não é líder coisa nenhuma. Ele apenas escuta e reproduz aquilo que é a opinião estabelecida pelas massas". Por fim, João congregaria a hostilidade e histerismo da comunicação social contra a sua própria causa. É, no fundo, esta a receita que Ventura tem seguido para erodir a democracia portuguesa.

Larry M. Bartels, na sua obra "Democracy Erodes from the Top" já alertava para o facto de serem os líderes, e não os cidadãos, a força motriz da crise democrática na Europa. E João acrescenta que "é muito raro o povo escolher ditaduras. O temor em falar de temas que possam ser politicamente delicados é o caldo perfeito para a emergência do populismo."

João admite que, embora não tenha o otimismo dos anarquistas, sabe que são eles que têm o coração no sítio certo. "Eu concordo com Abraham Lincoln - eu não quero ser senhor de escravos, mas também não quero ser escravo. Não tenho vontade de poder, mas também não tenho vontade de me submeter ao poder."

Uma espécie de conservador anarquista é aquilo que melhor poderia descrever João que considera que "a submissão ao poder é sempre algo de profundamente humilhante. O facto de precisarmos de autoridade política é uma forma de contemplarmos a nossa infantilidade".

Este utopismo talvez nasça da sua juventude depois do fim da história - "quem viveu na década de 90 viveu no paraíso. Um tempo que não era assombrado por nada. As possibilidades eram infinitas. A melhor forma de medir o tempo a que pertencemos é olhar para a cultura popular. Na década de 90, as séries eram Friends, Seinfield… A pura doçura da vida. Vivíamos num clima de conversa, de amizade, despreocupação que chega ao fim com o 11 de setembro e a crise financeira de 2008."

João confessou que a estranheza que sentimos em relação a este mundo em conflito não é mais do que o confronto com a realidade que sempre existiu, "nós estávamos mal-habituados. A ordem liberal do pós-guerra foi à normalidade histórica."

Ao João preocupa-lhe também o retorno do antissemitismo e confessa que a linha que separa a crítica legítima ao Estado de Israel e o ódio aos judeus é muito ténue. João pressente um clima como aquele que existia antes da Alemanha nazi, um "certo probleminha com os judeus", diz. Discordei, com base na premissa de que as razões desse antissemitismo – muito embora injustificável – têm uma génese e enquadramento diferente. Naturalmente que ambos concordámos que manifestações de ódio são, em todas as instâncias, intoleráveis.

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