www.publico.ptpublico@publico.pt - 14 mai. 20:34

Valongo, o paraíso dos ciclistas

Valongo, o paraíso dos ciclistas

O pendura, altruísta, deu-se ao trabalho de abrir a janela e gritar bem alto uma sábia e velha lição: “A bicicleta é para andar nos passeios!”

Tenho uma triste confissão a fazer. Sempre que posso, uso a bicicleta para me deslocar dentro do Porto. Tentarei justificar o injustificável. Nem me passa pela cabeça argumentar que o faço porque gosto: apesar de tudo, tenho devida noção do ridículo. Assistem-me argumentos um pouco menos fracos, embora não muito. O principal: do trabalho a casa são seis quilómetros. À hora de ponta, de automóvel ou de transportes públicos, o percurso custar-me-ia praticamente o triplo do tempo.

Bem sei que é de um egoísmo extremo. Até a ideia de que esta é uma forma de poupar uns trocos é de uma sovinice intolerável. Mas pior que isto é mesmo a minha consciência caviar, que fica mais bem servida quando não força uma tonelada de aço e plástico a rodar em cima de quatro pneus, e a queimar gasóleo para fazer deslocar um pobre coitado cuja barriga, aliás, anda bem falha de exercício. Sim, pasme-se. A bicicleta é eléctrica.

A única coisa que me vai aligeirando um pouquinho a consciência é o facto de muitos condutores irem sentindo o imperativo moral de me recordarem destas minhas muitas falhas. As buzinadelas, os grunhidos e os insultos que ouço todas as santíssimas semanas são verdadeiras chamadas de atenção à minha vil condição de pecador. E não me venham com tretas. Manter uma velocidade constante e juntar-me à berma não são suficientes desculpas. E aqueles momentos egoístas em que Darwin me força a desviar do buraco ou da sarjeta? E como adoro eu o maravilhoso empedrado portuense, e a forma curiosa como mói até o músculo cuja existência não suspeitava! Oxalá nunca o perigoso lobby dos ciclistas permita acabar com aqueles necessários cinco metros de empedrado que unem dois asfaltos, o pavimento dos molengões!

Não se pense, porém, que não ando à procura de uma solução para o problema. Quantas noites já não passei em claro, a tentar descortinar uma forma de os carros não terem de se desviar ou reduzir a velocidade para me ultrapassar. Hélas!, cruéis são as leis da física...

Uma última confissão. Preciso de desanuviar a consciência. Ontem cedi ao pior que há em mim, e reagi ao vigésimo sexto apelo do mês à conversão automobilística. Um veículo, depois de me ultrapassar, estrada desimpedida, sem carros à vista, sem sequer ter tido de abrandar, achou por bem censurar-me – e bem – pelo facto de estar a andar de bicicleta. O pendura, altruísta, deu-se até ao trabalho de abrir a janela e gritar bem alto uma sábia e velha lição: “A bicicleta é para andar nos passeios!”

Poucos metros depois, o veículo ficou parado na fila, como estranhamente acontece a todos esses bravos justiceiros que me tentam em vão abrir a pestana. Fraquejei. Fui orgulhoso. Mea culpa. Tive a ousadia de perguntar ao indivíduo se conhecia o código da estrada. Disse-me que sim. Expliquei-lhe que as bicicletas, sendo consideradas veículos, não podem circular nos passeios. A sua resposta foi edificante: “Você é que não sabe ler!” Enchi-me de um pouco mais de arrogância. Perguntei-lhe se queria que lhe lesse o artigo que fala sobre isto (o inenarrável artigo 17). Não quis ouvir mais. Os sábios são assim.

Perguntei-lhe se costumava andar de bicicleta. 'Sim', disse. 'Mas só em Valongo', acrescentou, corrigindo-me como um pai que antecipa a manha do filho

Mas eu estava descontrolado, insolente, impante. Perguntei-lhe se costumava andar de bicicleta. “Sim”, disse. “Mas só em Valongo”, acrescentou, corrigindo-me como um pai que antecipa a manha do filho. “E em Valongo só se anda de bicicleta nos passeios?”, redargui. “Sim”, assegurou-me, num vocabulário um pouco mais refinado do que este. E eu fiquei para ali a pensar que, ou muito me engano, ou Valongo deve ser o paraíso da mobilidade urbana. Se se tratar do inferno, não duvido de que acabarei por lá ir parar, para cumprir pena justa e eterna.

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