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E depois de Abril

E depois de Abril

Os professores já perceberam que, mais uma vez, nada mudará.

Abril celebrou, com uma manifestação inesquecível, os 50 anos de um dos momentos mais significativos da história da democracia europeia, e testemunhou a inquietação com os resultados eleitorais. E se votar e celebrar deviam transportar a esperança no futuro, passou Abril e regressou a engrenagem doentia à vida dos professores.

Tem sido assim nas últimas duas décadas, apesar das inúmeras formas de luta carregadas de genuinidade e autenticidade (algumas manifestações estão entre as maiores de sempre). Ouviram os apelos ao fim do medo nas escolas e à restauração das liberdades elementares, mas nada mudará porque foi exactamente com a asfixia da democracia que se iniciou a sua proletarização.

De facto, o poder político foi mal-agradecido com as gerações de professores que democratizaram o ensino; e habituou-se. Desfila na avenida sem remorsos, apesar de já ser impossível esconder a falta estrutural de professores e a queda das aprendizagens dos alunos. A ingratidão dos consecutivos governos resume-se nos incontáveis acórdãos dos tribunais a ilegalizar serviços mínimos aplicados "tacticamente" nas escolas. Por via disso, decorrem intoleráveis processos disciplinares, e persistem faltas injustificadas e descontos salariais.

Recorde-se que é factual a desistência, neste milénio, do Orçamento do Estado na Educação: de 6,3 % do PIB para 4,6%. Os sucessivos governos centraram-se no corte orçamental e na obtenção caótica de dados. Aceleraram a entropia na destruída carreira dos professores, ignorando os avisos a implorar por justiça e simplificação de procedimentos. Aliás, há incalculáveis situações brutalmente injustas e irreparáveis e outras tantas em vias disso.

Mas o novo Governo segue o manual da descida. A proposta do ministro da Educação de recuperação de 25% do tempo de serviço a partir de 1 de Setembro de 2024, é complementada com a revogação do “acelerador da progressão” do decreto-lei 74 de 25 de Agosto de 2023, e o processo estende-se até ao final da década. Não querendo maçar o leitor com tecnicidades, apenas lhe digo que esta proposta, que relaciona escritos de Franz Kafka e Nicolau Maquiavel, provocará mais injustiças. Além disso, sem a eliminação das quotas e vagas na avaliação do desempenho, milhares de professores não obterão qualquer efeito da recuperação do tempo de serviço, numa carreira que terá, até 2030, uma redução estimada de mais de 7% da massa salarial.

E cruzando os programas, eleitoral e de Governo, com as opiniões dos governantes da Educação, instalou-se uma apreensão que não se resume à recuperação de empresas privadas do sector financiadas pelo Estado, ou à ausência de qualquer programa que enfrente a falta de professores.

Sumarie-se: se os professores explodiram, em 2022, de indignação e exaustão por causa da passagem dos concurso para as escolas, o novo Governo parece que a recuperará, acrescentando-lhe a municipalização, a desqualificação do exercício e a substituição de professores por conteúdos digitais massificados; se os professores não desistem de protestar contra o modelo de gestão das escolas, o Governo parece possuído pela criação da carreira de dirigentes escolares, e aberta a não professores e sem limitação de mandatos; se os professores teimam em protestar contra a farsa da sua avaliação alimentada por quotas e vagas, o Governo promete prémios de desempenho para dissimular a queda da massa salarial e agravar a divisão de profissionais.

O Governo acentuará no ambiente escolar o individualismo e o salve-se quem puder, e não tardará em tentar colocar a opinião pública contra os profissionais

Aliás e em suma, a secessão, a divisão, a separação, o confronto violento e o ódio tornaram-se as armas dominantes na democracia. E se a sua patente fragilidade desespera por mais união, mais cooperação e mais objectivos comuns na elevação da sociedade e das organizações, o Governo acentuará no ambiente escolar o individualismo e o salve-se quem puder, e não tardará em tentar colocar a opinião pública contra os profissionais. Se a democracia é a vontade da maioria em respeito pelas minorias, a receita para as escolas é a vontade das minorias em desrespeito pelas maiorias.

Acima de tudo, se a OCDE, a Comissão Europeia e outras organizações há muito que alertam que é em Portugal que a indisciplina, a burocracia e a organização do trabalho mais adoece e desgasta os professores, também sublinham que estes são os melhores a adaptar as aulas às necessidades dos alunos. E se é "entre os jovens que o legado do 25 de Abril é mais valorizado.", não demorará que os historiadores concluam: a escola pública só não caiu mais depressa, porque milhares de professores são cravos que não murcham.

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