visao.ptMARGARIDA LOPES - 14 mai. 12:51

Visão | Quem diria que odiamos tanto?

Visão | Quem diria que odiamos tanto?

Ódio: Sentimento de intensa animosidade relativamente a algo ou alguém, geralmente motivado por antipatia, ofensa, ressentimento ou raiva - in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

As redes sociais são terreno fácil para ódio anónimo. Sempre foram. Atrás de um ecrã é fácil cuspir insultos de todo o género e feitio, e o facto de as autoridades pouco poderem fazer quanto a isso – “Sendo só online, é complicado” – têm feito aumentar o sentimento de impunidade daqueles que se divertem a atacar violentamente os seus alvos.

É, precisamente, por essa razão, que a sentença que saiu do julgamento de Mário Machado pelo incitamento ao ódio a mulheres de esquerda nas redes sociais é tão importante: dois anos e 10 meses de prisão efetiva parece pouco, mas é um início. Porque apesar de “serem apenas palavras”, o nível de violência não é menor.

Temos, atualmente, no Parlamento, 50 deputados que pertencem a um partido que, tal como os seus congéneres mundiais, cresceu com o incitamento ao ódio. Com um uso absolutamente incrível do poder das redes sociais – tem de lhes ser dado esse mérito – conseguiram disseminar um discurso racista, xenófobo e muitas vezes anticonstitucional que é facilmente compreensível e que faz os seus seguidores acreditarem que estão a ver uma Luz que todos os outros, ignorantes, falham em vislumbrar.

E, de repente, aquilo que há uns anos era inaceitável – o ataque gratuito aos imigrantes, aos ciganos, às mulheres, aos pobres, aos outros… – passou a ser apenas normal.

E o ódio, que cresceu nas redes sociais, passou rapidamente para as ruas, para as casas das pessoas, para as escolas, para a nossa vida em sociedade. Porque alguém que tem assento parlamentar nos nossos órgãos de soberania fez acreditar que não faz mal odiarmos pessoas.

E agora, que já não é “só online”, talvez seja hora de olharmos bem para os níveis absolutamente inaceitáveis de ódio e de violência que estamos a permitir que se espalhem pelas nossas vidas, nos nossos locais de trabalho, nas ruas que calcorreamos, nas escolas que os nossos filhos frequentam.

Dados da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial revelavam que, entre 2017 e 2021 as denúncias de xenofobia contra imigrantes brasileiros cresceram 505% (quinhentos e cinco por cento!) em Portugal. Há duas semanas, uma noite encheu o Porto de sangue, com ataques violentos a imigrantes numa praça pública – acabaram no hospital! –, para aperitivo, e a entrada de uma dezena de homens na casa de imigrantes venezuelanos, argelinos e venezuelanos, munidos de paus, facas e uma arma de fogo.

Esta manhã, a Renascença deu conta de que uma criança nepalesa, de nove anos, “foi linchada” por colegas na escola. Os atacantes, todos menores, garantiram que o ataque fosse filmado e divulgado nos grupos de Whatsapp das crianças. Os pais não fizeram queixa porque temeram represálias.

“Quem diria que a normalização do discurso racista, no espaço público, resultaria em ataques racistas contra as minorias?”, dizia-me um colega quando demos conta da notícia.

Quem diria, acrescento eu, que nós éramos capazes de odiar tanto? Quem diria que somos um povo tão cheio de medos que vê em cada pessoa uma ameaça, ao invés de ver aquilo que ela é. Uma pessoa. Quem diria que as nossas crianças (crianças!!!) têm em si tanta violência que deixaram um colega de nove anos com feridas abertas, o corpo cheio de hematomas e um trauma que precisará de muito apoio para superar?

Quem diria que Portugal, que durante décadas se manteve entre os países mais seguros para se viver, é agora um exemplo de crueldade a começar nos mais pequenos?

Há uns dias, o jornal Público publicou uma belíssima reportagem sobre como o Fundão acolhe e integra imigrantes há anos, garantindo não apenas a sustentabilidade da região, mas o sucesso de muitas empresas fundamentais para a economia nacional. São mais de 74 nacionalidades que convivem à beira da Serra da Estrela, e que representam cerca de 7% da população total da região – sem violência, sem ódios, sem dramas. Se não há medo, por lá? Claro que há. Porque o desconhecido assusta, e nós somos humanos. Mas quando deixamos o medo tomar conta das nossas ações, o que temos é uma nação cheia de ódios.

E desengane-se, caro leitor, se acha que ficar em silêncio ou, simplesmente, não embarcar no discurso violento, é suficiente para travar a onda que se aproxima perigosamente de nós. Não é. Agora é a hora de tomar partido, de impedir as injustiças, de ensinar o amor, de apelar ao bom-senso. É um trabalho que exige coragem, discussões com amigos e conhecidos, altercações com figuras de autoridade. Mas se nós não o fizermos, quem o fará?

Já não estamos a falar da vida no éter da Internet. Estamos a falar das nossas vidas. Dos nossos filhos. Das pessoas ao nosso lado.

Se não conseguirmos evitar que pessoas sejam espancadas nas suas próprias casas, que crianças sejam despidas da sua infância, não servimos enquanto sociedade. E não há partido que me convença do contrário, por mais deputados que sente na AR.

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