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Visão | Zeca podia ter sabido que a sua “Grândola” era a senha do golpe do 25 de Abril. Mas não soube. História de um segredo dorido

Visão | Zeca podia ter sabido que a sua “Grândola” era a senha do golpe do 25 de Abril. Mas não soube. História de um segredo dorido

Amigo do peito e companheiro de luta e de canções contra a ditadura, José Jorge Letria soube que “Grândola, Vila Morena” seria a “canção-senha do movimento libertador”, mas nada pôde dizer a Zeca. “Por regras conspirativas”, conta agora à VISÃO, assumindo a “pena” que sentiu

Nas vésperas do golpe militar do 25 de Abril de 1974, que derrubaria a ditadura do Estado Novo, José Afonso não ia dormir a casa, em Setúbal. Pode dizer-se que estava escondido em Lisboa, pernoitando em casas de amigos. Procurava, assim, despistar a PIDE, que, como de costume, andava de olho nele. Por aquela altura, a polícia política do regime desencadeava sempre uma vaga de detenções de opositores, para evitar as manifestações do 1.º de Maio. E Zeca receava ser novamente preso, como sucedera no ano anterior, quando passou 21 dias em isolamento na cadeia de Caxias, entre maio e junho, submetido a sucessivos interrogatórios por inspetores da PIDE. 

Enquanto isto acontecia, José Jorge Letria, jornalista no diário República, mas também cantor de protesto, era envolvido no segredo do levantamento militar pelo seu camarada de redação Álvaro Guerra, elemento da componente civil que ajudava o Movimento das Forças Armadas na preparação do golpe. José Jorge Letria soube, então, que Grândola, Vila Morena, de José Afonso, seria a “canção-senha do movimento libertador”, a ir para o ar à meia-noite e 20 de 25 de Abril, no programa Limite, do jornalista Carlos Albino, na Rádio Renascença. No dia 24, lia-se no República o seguinte: “A qualidade dos apontamentos transmitidos e o rigor da seleção musical fazem de Limite um tempo radiofónico de audição obrigatória.”

José Jorge Letria conta agora, à VISÃO, que sentiu “um desejo e uma urgência grande” em dar a esperançosa notícia a Zeca, amigo do peito e companheiro de luta e de canções contra a ditadura. “Mas não podia fazê-lo, por regras conspirativas”, diz o também poeta, escritor e, hoje, presidente da Sociedade Portuguesa de Autores. “Não estava autorizado, nem por quem me tinha passado a informação nem pelos militares, a partilhá-la.” 

José Jorge Letria sentiu “um desejo e uma urgência grande” em dar a esperançosa notícia a Zeca. Mas, diz agora, “não estava autorizado, nem por quem me tinha passado a informação nem pelos militares, a partilhá-la” 

“Tive pena”, acrescenta. Era dono da “informação segura e certa” de que Grândola, “que tínhamos cantado juntos tantas vezes”, seria a senha para o arranque do golpe contra a ditadura, e nada podia dizer a Zeca. Estava em curso “um ato conspirativo”, que tinha de ser “preservado e protegido com o silêncio”, lembra.

No final do dia 26, José Jorge Letria telefonou a um “eufórico” José Afonso – que só no dia 25 soube que a sua Grândola tinha sido a canção-senha da que já era a Revolução dos Cravos. “Falámos ao telefone com calma”, diz. “Contei-lhe uma história minuciosa e detalhada do que se tinha passado e do que eu tinha vivido.” E Zeca mostrou algum desagrado? “Nenhum”, responde. “Ele sabia perfeitamente que não lhe podia dizer.”

Mas a recordação mais forte que José Jorge Letria guarda daquela conversa, em que Zeca até deu a ideia de mal ter ouvido as desculpas e justificações do amigo, é a de uma pergunta insistente do autor de Venham Mais Cinco: “Pragmático e objetivo, quis logo saber como nos íamos organizar para o nosso trabalho revolucionário.”

A união, porém, durou pouco. Logo em maio de 1974, os cantores de extrema-esquerda (como José Mário Branco) e os “revisionistas” do PCP (como José Jorge Letria) cindiram-se sem contemplações. Zeca, esse, manter-se-ia equidistante de uns e de outros: “Sou o meu próprio Comité Central”, dizia. 

“Houve um afastamento ideológico entre nós, mas nunca um afastamento pessoal”, diz José Jorge Letria sobre a sua relação com Zeca no pós-25 de Abril. “Continuámos sempre a darmo-nos muito bem, a sermos amigos e a partilharmos muitas coisas que eram essenciais para nós. Nunca houve zanga pessoal no meio disto. Houve só uma clarificação ideológica.”

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