expresso.ptMiguel Prudêncio - 23 abr. 11:47

A subtil ligação entre democracia e saúde

A subtil ligação entre democracia e saúde

É claro que as conquistas científicas e médicas feitas a nível mundial ao longo destes últimos 50 anos teriam ocorrido independentemente do sistema político que vigorasse em Portugal. Mas é absolutamente legítimo interrogarmo-nos se elas teriam tido o impacto que efetivamente tiveram na vida de todos nós

O dia 25 de abril de 2024 é, para qualquer democrata, um momento de celebração. São 50 anos de progresso, é meio século de liberdade. Por mais que nos tentem impor uma narrativa segundo a qual o país está num estado deplorável, que tudo é péssimo e nunca esteve tão mal, a realidade teima em desmentir tais teses catastrofistas, que tanto jeito dão a quem vive e se alimenta do caos, ou da perceção dele.

Nestes 50 anos de Democracia, a mortalidade infantil passou de 48 para menos de 3 por mil habitantes, e a esperança de vida aumentou de 69 para 81 anos. São apenas dois indicadores, e outros se poderiam invocar para ilustrar o progresso feito ao longo destas cinco décadas de vida em liberdade.

Poder-se-ia argumentar que muito desse progresso era inevitável, e teria acontecido mesmo na ausência de Democracia. .

É que uma coisa é existirem ferramentas para lidar com, por exemplo, a doença. Outra, bem diferente, é a forma como os Estados promovem, ou não, o acesso das populações a essas ferramentas. Existirá, então, alguma ligação entre indicadores como os acima mencionados e uma vivência em Democracia?

Para analisar esta questão, recorri a um tema que me é familiar, por constituir o foco do meu trabalho enquanto investigador: a malária. Muitos leitores porventura não saberão, mas o dia 25 de abril é também, desde 2008, o Dia Mundial da Malária. Trata-se de uma data que visa assinalar o esforço que é necessário continuar a fazer para controlar uma doença que, embora tenha sido eliminada da Europa e de outras partes do globo, ainda mata mais de meio milhão de crianças todos os anos na África Subsariana.

Contudo, o impacto da malária está longe de ser uniforme nos 46 países que compõem esta região. Do mesmo modo, estes países apresentam Índices Democráticos, medida que classifica de 0 a 10 o estado da Democracia em cada país, muito díspares entre si.

Relação entre mortalidade por malária e Índice Democrático na África Subsariana. Verde e vermelho: países com menor e maior mortalidade por malária per capita, respetivamente.

Ora, uma análise comparativa da mortalidade per capita por malária e do Índice Democrático das nações que integram a África Subsaariana revela algo, no mínimo, curioso: enquanto os seis países em que a mortalidade por malária é menor (Maurícias, Lesoto, Cabo Verde, Botswana, África do Sul e Namíbia) têm Índices Democráticos entre 6.1 e 8.1 (o valor mais alto do conjunto de países desta região), os seis países onde aquela mortalidade é maior (República Centro-Africana, Níger, Nigéria, Burkina-Faso, Serra Leoa e Mali) apresentam Índices Democráticos entre 1.2 (o valor mais baixo daquele conjunto de países) e 4.3. Sendo claro que a incidência de malária depende de diversos fatores, não deixa, pois, de ser legítimo sugerir que o estado da Democracia nos países onde esta doença existe é uma das condicionantes do seu impacto na população.

Esta constatação remete-nos de volta para os progressos ocorridos em Portugal desde o 25 de abril, nomeadamente no que diz respeito aos cuidados de saúde. Teríamos nós os indicadores de mortalidade infantil e esperança de vida que hoje nos orgulhamos de ter, se, tal como acontecia antes do 25 de abril, não existisse Serviço Nacional de Saúde, se o acesso à informação estivesse condicionado, e se o ensino universitário apenas estivesse acessível a uma ínfima minoria da população? Arriscaria afirmar que não. Estas são conquistas cujas implicações transcendem os seus impactos mais óbvios e que, em última análise, podem significar a diferença entre a vida e a morte.

O acesso de todos, e não apenas daqueles que podem pagar, a cuidados de saúde, a possibilidade de nos informarmos livremente, e a literacia da população são determinantes efetivos não só da qualidade de vida, mas da própria sobrevivência. Os EUA, por exemplo, onde o acesso de todos à saúde não é garantido, estão mais de 40 posições abaixo de Portugal no ranking dos países com menor mortalidade infantil, e a esperança média de vida é aí quase 5 anos inferior à portuguesa!

Infelizmente, o caminho percorrido nestes domínios não é irreversível. Quaisquer retrocessos nas políticas públicas de saúde, quaisquer restrições à liberdade de acesso à informação, e qualquer desinvestimento na escola e na universidade públicas terão, inevitavelmente, graves consequências. É, pois, desejável que não nos esqueçamos que um ataque à Democracia é também um ataque à saúde de cada um de nós, e da sociedade enquanto tal.

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