expresso.ptAgostinho Lopes - 23 abr. 07:22

Plataformas, as "praças de jorna" do tempo digital

Plataformas, as "praças de jorna" do tempo digital

As novas tecnologias, todas as potencialidades da Revolução Científica e Técnica em curso devem ser colocadas ao serviço da humanidade, dos povos e dos trabalhadores. Em cooperação e solidariedade

As Plataformas Electrónicas (ou Informáticas) de contratação de mão-de-obra são a versão digital das Praças de Jorna (1) de antanho. Nestas, os trabalhadores esperavam na praça da vila ou aldeia que chegasse o capataz para escolher os trabalhadores que o latifundiário ou patrão precisava. O horário estava fixado de antemão: de sol a sol (pelo menos até 1962). Hoje com a Plataforma os trabalhadores esperam a chegada da mensagem da Aplicação Informática com a indicação do cliente e do serviço pretendido: um transporte de carro ou a entrega de uma pizza! O horário, pode ser de 24 horas…

Pode parecer estranho, mas é o que acontece quando comemoramos os 50 anos da Revolução de Abril…

Por estes dias temos assistido a mais uma extraordinária manifestação de hipocrisia dos responsáveis pela “legalização” de tais relações e condições de trabalho, PS, PSD e CDS através da lei 45/2018 de 10 de Agosto. É ver como a actual Ministra do Trabalho, como os anteriores responsáveis do PS, estão preocupados, mesmo compungidos com o actual caos (que Relatórios oficiais evidenciam)(2) presente nas situações laborais e prestação de serviços quer dos trabalhadores operando com TVDE quer dos que prestam serviço de estafeta. É claro que preocupados, mas nem tanto, sem nunca pôr em causa o “modelo de negócio” baseado na precariedade extrema, desregulação horária e salários degradantes (3), pois que o “novo Governo (como aliás o anterior, dizemos nós) não tem qualquer filosofia persecutória em relação às Plataformas” (4).

A liberalização feita através da Lei 45/2018 do serviço de transporte remunerado em veículo ligeiro, até então realizado em todo o país pelo serviço de táxi fortemente regulamentado e contingentado, aliás colhendo toda uma experiência de décadas, independentemente de aperfeiçoamentos sempre possíveis, foi, absolutamente, uma violação da sempre tão invocada Lei da Concorrência, o fio de prumo do mercado capitalista. Reduziu a zero a “concorrência leal” ao estabelecer duas regulamentações diferentes para o mesmo trabalho/serviço prestado no mesmo mercado: o mercado do transporte remunerado em veículo ligeiro. Duas ofertas com diferentes regulamentações, uma exigente e malha fina para o Táxi e outra à vara larga para a Uber e c.ia, para a mesma procura! Diga-se, em abono da verdade, que a Lei surge depois de 4 anos de actividade completamente à margem de qualquer enquadramento legal, isto é uma operação remunerada de transporte feita na completa clandestinidade, como economia paralela… sob os olhares atentos das autoridades responsáveis por fiscalizar tal actividade. E enquanto aplicavam coimas aos taxistas... Aliás um dos argumentos para legalizar, era a sua existência. Admitiu-se aquela actividade ilegal e justificou-se a passividade do Estado em nome de que a inevitabilidade das Plataformas vai um dia levar o Estado a legalizá-la…

Com a agravante de não respeitarem sequer o artº 31º da Lei que determinava a obrigatoriedade de revisão passados 3 anos, isto é, em 2021. Estamos em 2024 e a nova (como o anterior) Srª Ministra ainda anda a falar da sua abordagem no Comissão de Concertação Social. Passados quase 6 anos sobre a publicação da Lei 45/2028, e de milhões de horas de trabalho de milhares de motoristas e estafetas por conta e na inteira disponibilidade das ditas Plataformas, a engrossar os vultuosos lucros das suas multinacionais, e ainda diversas entidades do Estado português debatem se há ou não vínculo laboral entre aqueles trabalhadores e as Plataformas!

Acrescente-se: é muito interessante verificar que as recomendações do IMT e AMT para apoiar a revisão da Lei 45/2018, para fazer face às dificuldades de fiscalização dos TVDE, nomeadamente em matéria de identificação do veículo, e de outra regulamentação, se aproximarem das normas já há muito em vigor para os táxis…

Foi preciso que o caos visse a luz do dia e que os explorados se manifestassem na rua para que muita gente percebesse a enormidade a que o liberalismo, desta vez fundamentado na nova tecnologia digital e também na leitura distorcida e também falsa da qualidade dos serviços de táxi. (5) Não se esqueça: a principal responsabilidade nessa perda de qualidade não pertence às empresas de táxi, antes a sucessivos governos, surdos que nem portas, às reivindicações e propostas das suas associações.

Como não podia deixar de ser nas respostas que enunciou como caminhos para travar o desastre – e até ao momento não passam de vagas formulações como ouvir o CES e corrigir a alteração feita pelo PS em torno da verificação da existência de vínculo laboral na dita Agenda do Trabalho Digno - lá veio a novel Ministra invocar para justificar o injustificável a tecnologia para recusar uma reversão radical da filosofia que actualmente preside ao quadro legal: “seria inútil porque a revolução digital é imparável, mas também contrário ao principio constitucional da livre iniciativa económica, além de que estas formas de trabalho dinamizam a economia nacional e geram emprego”. (6) (Seria interessante que a Ministra explicasse melhor a fraudulenta argumentação que desenvolveu. Vale tudo na ocupação de mão-de-obra? A actividade empresarial dos táxis não é livre iniciativa económica?)

Nada de novo, foi nessa base que o chamado Livro Verde sobre as Relações Laborais do anterior Governo PS, no seu Ponto 2.4 “O Trabalho na Nova Economia Digital” advogou um programa para a assumpção axiomática e aceitação acrítica (porque inevitável, porque incontornável, dado decorrerem da Revolução Científica e Tecnol��gica) de destruição de conquistas laborais e sociais e uma maior liberalização das relações de trabalho. (7)

Para os teóricos e ideólogos, ou simples propagandistas, da necessidade de adaptar/moldar/alterar, isto é subverter a legislação laboral e liberalizar o mercado da força de trabalho, as formas e conteúdos da organização do trabalho, e particularmente da relação laboral capitalista, no contexto da revolução tecnológica digital (IA e etc) decorrem por imperativo categórico da existência desta. Ela possui uma dinâmica “natural”, uma inércia expansionista e incontrolável, que nos obriga a fazer o que não queremos. Não restaria às sociedades humanas, aos Estados, às forças económicas, sociais e políticas, mais que obedecer a essa dinâmica e inércia e fazer o que elas determinam. Nomeadamente destruir conquistas civilizacionais na regulamentação e regulação do mercado da força de trabalho.

Como assinalam e bem, outra gente de diversas áreas políticas e ideológicas, a questão é não perder o “controlo humano” sobre as Novas Tecnologias. Ou melhor, não permitir que esse controlo continue sob o domínio de “cinco ou seis grandes empresas de tecnologia”, as transnacionais, as BigTech, Google, Apple, Netflix, FaceBook, Twitter, Amazon e das oligarquias financeiras que as comandam. “ Em principio a tecnologia não é uma força exógena sobre a qual não temos controlo”! (8) Pois não. E devem ser os Estados em nome dos seus povos a efectuar esse controlo, em benefício dos seus povos e seus trabalhadores. E não se pense que essa regulação se fará por auto-regulação do capital que comanda essas empresas ou pela sua obediência a um “código de ética pan-europeu ou mundial”.

É notável que os propagandistas das novas tecnologias não comecem por abordar as Novas Tecnologias em matéria de organização do trabalho e das relações laborais na perspectiva de melhorar as condições materiais e psicológicas do trabalho dos homens e mulheres. Aliviando a sua penosidade, os esforços físicos e mentais desgastantes, o stress das rotinas e tarefas repetitivas, as longas jornadas de trabalho, a angústia da instabilidade da precariedade, da falta de emprego e das expectativas profissionais frustradas, as remunerações insuficientes, “os trabalhadores pobres”, o isolamento, segmentação e fragmentação da força de trabalho, inclusive por campanhas sistemáticas de divisão dos trabalhadores, combate aos sindicatos e à sua organização, etc, etc.

É notável que não se interroguem, pelo menos, porquê as Novas Tecnologias estão cada vez mais dirigidas contra os trabalhadores e os povos, inclusive pela sua crescente e massiva aplicação militar, e não na redução, atenuação e eliminação das chagas, misérias e desigualdades, que persistem nesta humanidade, gerida de forma dominante pelo capitalismo e o imperialismo!

Deve ser outra a nossa perspectiva. As Novas Tecnologias, todas as potencialidades da Revolução Científica e Técnica em curso devem ser colocadas ao serviço da humanidade, dos povos e dos trabalhadores. Em cooperação e solidariedade.

O 25 de Abril foi também o dia inicial para relações laborais libertas da armadura da organização corporativa ao serviço do capital, de uma intervenção da PIDE/DGS e outras polícias na “gestão” das relações laborais quando ao serviço do capital reprimiam as lutas dos trabalhadores, nomeadamente greves, por melhores salários e condições de vida. O dia inicial para o direito à livre organização e intervenção de sindicatos e Comissões de Trabalhadores, pelos esforços para conter a exploração através do SMN e da contratação colectiva, num Código de Legislação Laboral avançado. É inaceitável que ao abrigo de argumentação capciosa e falsa em torno das novas tecnologias direitos e garantias dos trabalhadores sejam postergados mesmo revogados por legislação ordinária, nomeadamente pondo em causa princípios constitucionais como “a segurança no emprego” e a justa remuneração – “retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna.”

(1) “A “praça de trabalho” ou “praça de jorna” é pois um mercado de mão-de-obra, a que vão assalariados e proprietários rurais (ou os seus delegados: os capatazes), e em que os primeiros, como vendedores, oferecem a sua força de trabalho, e os segundos, como compradores, oferecem o salário ou jorna, que é a paga de um dia de trabalho.”, Soeiro Pereira Gomes, “Praças de Jorna”, Agosto de 1946.

(2) Se alguém tiver dúvidas sobre a justeza do uso da palavra”caos” para descrever a situação dos trabalhadores das Plataformas, pode consultar os documentos: (i) Avaliação do Regime TVDE – Relatório Final, de Dezembro de 2021, do IMT; (ii) Parecer nº 19/AMT/2022 sobre “Transporte Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados a partir de Plataforma Electrónica – TVDE”, de Fevereiro de 2022 da AMT e “Relatório da Ação de Supervisão de TVDE” de Abril de 2024 da AMT, destinados a servir de suporte à revisão da Lei 45/2018.

(3) A Ministra Trabalho defende: “o que temos de assegurar é quando estes modelos de negócio envolvem trabalho humano, porque é sempre de pessoas que aqui estamos a falar, esse trabalho seja prestado em condições de dignidade, e no caso do trabalho dos motoristas de TVDE e dos estafetas, também em condições de segurança e num clima de confiança a quem recorre aos serviços da plataforma” (AbrilAbril, 18ABR24). A pergunta obrigatória a fazer é porque é que o “modelo de negócio” não garantiu esses imperativos até hoje, e acabou até por degradar as condições de trabalho com um mínimo de dignidade dos taxistas!

(4) Ministra do Trabalho, Jornal de Negócios, 19ABR24.

(5) Ver por muitos outros o artigo de Manuel Carvalho “A impunidade do taxismo-leninismo”, Público de 02OUT16: “O taxismo-leninismo que durante anos nos obrigou a viajar em veículos sujos, com música pimba aos berros entrecortada com discursos xenófobos ou quase fascistas…”.

(6) AbrilAbril, 18ABR24.

(7) O Livro Verde das Relações laborais replica um estudo europeu (Relatório anual da Eurofound, 2015) e “descobre” novas formas de trabalho – execução do trabalho por recurso a tecnologias digitais; partilha de trabalhadores; gestão intermitente por projecto; partilha de emprego; emprego colaborativo; portofólio de empregos; bolsas de emprego; vouchers de empregados e trabalho ocasional. Estas “novas formas de emprego” contêm pelo menos, segundo o LVRL, uma de duas características: (i) um novo modelo de mercado de trabalho, marcado pela relação empregador – empregado/cliente – trabalhador; um novo padrão de emprego, marcado pelo uso de tecnologias digitais. Extraordinário! Ninguém informou os autores do LVRL (e muitos foram os consultados, talvez poucos os escolhidos!) e eles não sabiam, que à excepção da primeira forma de trabalho – o digital de facto ainda não tinha sido inventado - as 8 restantes são velhas como o mundo…a generalidade é, de antes da 1ª Revolução Industrial. O que acontece, é que nunca ninguém tinha chamado à Praça de Jorna “bolsa de empregos”, ou à contratação trabalhadores para a vindima ou para uma ceifa, “gestão intermitente por projecto”, ou ao dono de escravos que os aluga, “vouchers de empregados”! Ou essa forma, verdadeiramente novíssima, (só pode ter saído dos cérebros do MIT) que é o “trabalho ocasional”!!!

Todo o texto do LVRL, é uma tese de rabo na boca: o trabalho é precário porque a Nova Tecnologia assim o determina, a Nova Tecnologia assim o determina, porque o trabalho é precário!

(8) António Costa Silva, Profº no IST e ex-Ministro da Economia, Expresso 04NOV

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