expresso.ptPedro Gomes Sanches - 22 abr. 07:02

Saúde “über alles”

Saúde “über alles”

Há duas lições a tirar da proibição total do fumo a nascidos depois de 2009, aprovado no Reino Unido: a liberdade é o direito natural mais mal amado; e a moderação moderna confunde-se não poucas vezes com cobardia e oportunismo. A quem derroga os extremismos e ama a liberdade, não resta outra atitude que não seja a de deplorar e combater veementemente estas medidas

O Partido Conservador britânico cedeu. Digo cedeu, porque não se trata, desta feita, de mais uma das suas idiossincrasias doutrinárias, aglutinando tendências – como, pelo menos, desde Disraeli –, vincando a sua natureza de catch-all party. Digo cedeu, porque abdicou de um elemento central do conservadorismo anglo-americano: a liberdade.

Digo cedeu, mas Churchill, em Bladon, deve estar a dar voltas no túmulo, disposto a atravessar os Comuns para se sentar noutra bancada qualquer, gritando: enlouqueceram!

Pela mão de Rishi Sunak, o “moderado”, o “moderno”, o “responsável”, o “oposto de Boris”, os Tories aprovaram uma legislação que proíbe, para sempre, qualquer nascido depois de 2009 de comprar tabaco. Com uma votação de 383 votos a favor e apenas 67 contra, a The Tobacco and Vapes Bill foi esta semana aprovada nos Comuns. A oportunidade, terá pensado Sunak, estava aí ao sabor da turba (democracia em prol da saúde, dirão alguns): uma sondagem do YouGov sugere que o banimento do fumo é cada vez mais popular, com um terço dos eleitores a aprovarem a medida e 30% a reclamarem um banimento total; contra qualquer espécie de banimento, apenas um quarto dos eleitores.

Os argumentos são as lérias sanitárias do costume: ai, que é a principal causa de morte, ui, que os fumadores oneram os serviços nacionais de saúde, oh, coitadinhos dos fumadores passivos. No fundo, as mesmas às quais as minhas críticas desencadearão, aqui em baixo na caixa de comentários e nas redes sociais, as ofensas do costume a este vosso humilde servo.

Estou habituado. Podem prosseguir enquanto acendo um half-corona. Mais aliviados?

A verdade é que cada vez menos resistem: nesta iniciativa legislativa dos Conservadores, não sem surpresa, eis o apoio dos Trabalhistas, que viram nisso mais uma oportunidade de “domar” o povo e de zombar dos velhos Conservadores. Apenas uns indómitos se mantiveram firmes na defesa da Liberdade: “o plano de Sunak para impor algumas das mais restritivas leis anti-tabaco do mundo, iraram alguns membros do Partido Conservador, entre os quais os ex-primeiros-ministros Liz Truss e Boris Johnson, que declarou que o Estado não deve interferir na forma como as pessoas vivem a sua vida”. É caso para dizer: God save Boris!

Tenho uma má e uma boa notícia para os fanáticos: a má notícia é que vamos todos morrer. A boa notícia é que vamos todos morrer. É que nem vossas excelências merecem viver para sempre uma vida asséptica, sujeita às vossas tiranias e às tiranias de outros fanáticos como vós. Depois do tabaco, o álcool; depois do álcool, os açúcares; depois dos açúcares, as gorduras; depois das gorduras, a carne vermelha. Depois da carne vermelha, o que se lembrarem depois. Tudo em nome da volonté générale, essa alucinação da Revolução Francesa, e da saúde, o novo mote do novo über alles (acima de tudo) de má memória. O que não faltam por aí são “revolucionários”, repletos de “bons motivos” e “razão”, apetrechados com estatísticas na voz e moralismo na ponta do dedo esticado.

Não desprezo os números e os riscos, mas os números e os riscos, numa sociedade de gente livre e responsável, que dispensa um nanny state, são argumentos abertos para a sensibilização e a discussão livre que conduza à livre escolha; e não, como agora, uma sentença fechada que leva à imposição coartante da liberdade.

É que, lamento desapontar-vos, insistindo: não se trata de saúde, trata-se de liberdade. E, nem a propósito, acontece isto na semana em que, em Portugal, se celebram os 50 anos do 25 de Abril que ficou consagrado, não como o dia da Democracia (essa, por cá, só começou a consolidar-se um ano depois, no 25 de Novembro), mas como o dia da Liberdade.

E porque é de liberdade que se trata, vale a pena lembrar Hayek. João Carlos Espada, numa síntese bem oportuna de Hayek, dá uma ajuda: “liberdade é não só o primeiro valor como a fonte e a condição dos outros valores morais. A liberdade é o primeiro valor, [porque é] a condição para que cada indivíduo possa assumir a sua capacidade humana de pensar e avaliar, de escolher os seus próprios fins, em vez de ser apenas um meio para outros atingirem os seus fins. Em segundo lugar, [porque] só um amplo campo de experimentação - aberto a iniciativas pacíficas individuais que devem, em princípio, ser autorizadas, independentemente da concordância da maioria - permite explorar o desconhecido e reduzir a nossa ignorância.”

Eu sei que a Liberdade nunca foi coisa especialmente apreciada. Lembro-me sempre d’O Grande Inquisidor, dirigindo-se a Jesus Cristo, no notável texto de Dostoievski n'Os Irmãos Karamazov: “será que não pensaste que [o Homem] acabaria questionando e renegando até a Tua imagem e a Tua verdade se o oprimissem com um fardo tão terrível como o livre-arbítrio?” Mas recordo que quem o diz não é o grande libertador, é… o Grande Inquisidor.

Há duas lições a tirar deste (mais um) episódio: a liberdade é o direito natural mais mal amado; e a moderação moderna confunde-se não poucas vezes com cobardia e oportunismo. A quem derroga os extremismos e ama a liberdade, não resta outra atitude que não seja a de deplorar e combater veementemente estas medidas.

Ou, indo mais longe que o Rei Eduardo VII, que ficou famoso também pela frase gentlemen you may smoke!: resistentes, deveis fumar!

Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia

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