expresso.ptexpresso.pt - 19 abr. 14:05

Ana Paula Tavares: “Há ainda zonas de sombra no 25 de Abril. Não tenho dúvidas que começou a ser forjado em África nas lutas de libertação”

Ana Paula Tavares: “Há ainda zonas de sombra no 25 de Abril. Não tenho dúvidas que começou a ser forjado em África nas lutas de libertação”

Após a independência de Angola, a guerra continuou e Paula Tavares fugiu muitas vezes, mas escreveu e ensinou sempre. Tinha 33 anos quando publicou o seu primeiro livro de poesia, “Ritos de passagem”, em 1985. A obra foi catalogada de imprópria para senhoras de bom nome e bom porte. Hoje é uma das vozes literárias mais amadas e destacadas de Angola com diversas antologias poéticas publicadas no mundo. “Um bom poema deve conter simplicidade, que o faz sobreviver ao tempo. Cada dia com menos palavras, cada palavra com menos sílabas só para poder ouvir os sopros.” Ouçam-na aqui nesta conversa em podcast com Bernardo Mendonça

Ana Paula Tavares nasceu no planalto da Huíla, província de Angola, lá onde como ela descreve “o sol chega primeiro e é tanta a luz que só a sombra permite a respiração breve e o soluço.”

A poeta e historiadora cresceu a olhar a serra como lugar para fugir e sentir o mundo à volta, soltando maldições e aprendendo a cozinhar e, com isso, a arte de fabricar venenos escondidos em pequenos frascos para todas as eventualidades.

Nos anos sessenta do século passado, o mundo mudava e a escola ensinava-a a ser dócil, útil, respeitosa e mulher. Mas não era esse o futuro que Ana Paula Tavares desejava para si.

Matilde Fieschi

Quando descobriu o prazer e o poder da leitura, assim como o poder da escrita, e a possibilidade de mundos e a descolonização do pensamento e ideias, Ana Paula nomeou-se contadora de histórias.

“Não para não morrer, mas para sobreviver à vida de todos os dias e à agonia de estar viva. O sentido primeiro das palavras tinha-me sido dado pelas mulheres dos pastores que com as suas vozes de cristal enchiam as manhãs de sons e ditados para organizar os dias. Ali, no reino do leite, permiti-me aceder à utopia do desconhecido: o fascínio por uma língua que não dominava onde o ato de contar se fazia presente a toda a hora. Pensei que a poesia poderia ser uma teoria da compreensão que me permitisse dar conta de tudo quanto não sabia e não podia compreender.”

É este o grande poder da poesia? Dar conta de tudo o que não se sabe, não se consegue explicar ou não se pode compreender? A pergunta é lançada.

Matilde Fieschi

A História e o seu estudo permitiram a Ana Paula Tavares método, disciplina e a aprendizagem da capacidade de dizer “não” e de escolha. Para contrariar um certo destino que estava reservado para si. A história dos bancos do liceu e da universidade não era a sua história, nem dos lugares à volta. A primeira e segunda dinastia tinham outros nomes e uma antiguidade que não batia certo com a chegada dos portugueses.

“Assim voltei-me para a desordem e o seu fascínio e o aprendizado de um vasto continente desconhecido e a haver. A linguagem pode ser um instrumento de revolta e reivindicação: li os primeiros livros zangados e comecei com a alfabetização segundo o método Paulo Freire, confluência de vários elementos e única possibilidade de luta que sabia e podia fazer. Ler tudo das pedras aos livros e ensinar.”

Matilde Fieschi

Angola tornou-se independente em 1975 e a guerra continuava. Ana Paula Tavares fugiu muito e muitas vezes, mas sempre encontrou um lugar onde ficar e ensinar. A experiência da maternidade mostrou-lhe o tanto de que era capaz, mesmo na adversidade.

“Nasceu-me uma filha e a vida tomou outro gosto, mesmo se havia que inventar comida para sobreviver os dias. Lavar roupa no rio, descobrir as fontes de água potável, recordar ensinamentos antigos para viver. A memória ajudou. As vozes das mulheres primeiras estavam presentes no dia a dia e na escrita enquanto olhava à volta e aprendia. Escrevi sempre. Publiquei tarde por pensar que versos que tratavam o corpo, os pés fincados na terra não eram tão importantes como outros que me antecediam e falam da luta. Foi grande a batalha para substituir o eu pelos nós. Inscrever no olho d’água que me espreitava os dias a forma de fintar o destino que tinha, afinal sido, toda a vida.”

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Aos 33 anos publicou o seu primeiro livro de poesia, “Ritos de passagem” (pela União dos escritores angolanos, 1985) e passou a assinar Paula Tavares na escrita poética. Mas a obra não foi bem recebida, nem bem entendida na altura. Acharam-na ofensiva. Ou melhor, um livro que era um exercício de voz, passou a ser catalogado como uma escrita imprópria de senhoras de bom nome e bom porte. Porque a sua poesia rasgou com uma certa ideia de mulher-continente, dando-lhe corpo, voz, individualidade, sexualidade. Um tremor poético.

Paula continuou a escrever e a publicar quando dava. Acaba por sair de Angola e por vir para Lisboa no fim da guerra fria, do socialismo, e de tantas utopias.

Em Portugal, Ana Paula Tavares continuou a estudar e a escrever. Um mestrado, um doutoramento em Antropologia da História pela Universidade Nova de Lisboa, e várias descobertas sobre a importância da escrita como exercício do poder. Ao longo deste tempo, escreveu crónica, novela, mas é a poesia que lhe orienta os dias. E é hoje uma das vozes literárias mais amadas e destacadas de Angola. Com antologias poéticas em Portugal, Brasil, França, Itália, Alemanha, Espanha e Suécia.

Paula Tavares aprecia a síntese poética, o poema enxuto, limado até uma simples frase virar diamante e dizer tudo o que há para dizer.

Ou como ela própria diz: “Cada dia com menos palavras, cada palavra com menos sílabas só para poder ouvir os sopros. As mulheres da minha terra e da minha idade já não existem. Assim não posso voltar e fechar um ciclo: devolver palavras a quem me ensinou a dizer.”

O seu último livro, “Poesia Reunida - seguido de Água Selvagem”, foi publicado em 2023, pela editora Caminho. E nele podem conhecer a sua vasta obra poética.

Importa ainda dizer que Ana Paula Tavares tem publicados vários estudos sobre a História e a Literatura de Angola e está presente em diversas antologias poéticas em Portugal, Brasil, França, Itália, Alemanha, Espanha e Suécia.

Há muito para lhe perguntar mas, acima de tudo, muito para escutar esta mulher, esta poeta e historiadora com um extenso estudo sobre a História do seu país. Como olha Ana Paula Tavares para o passado colonial e o processo de descolonização de África? Há ainda uma certa descolonização do pensamento ainda por fazer por cá?

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A historiadora defende que a revolução que originou o 25 de abril começou a ser forjada em África, nas colônias O que ficou por contar na história da luta anti fascista e anti colonialista? Que histórias de esquecimento importa lembrar?

E como encara Ana Paula este regresso de uma certa direita ultra conservadora e radical? Qual o lugar da escuta e do diálogo construtivo nestes tempos cada vez mais polarizados?

Na segunda parte desta conversa, a poeta e historiadora Ana Paula Tavares começa por responder a uma pergunta colocada pelo amigo e escritor angolano Ondjaki. Se pudesse fazer uma pergunta a um dos seus mortos, que pergunta seria? E a quem faria essa pergunta? E, já agora, tem algum grande arrependimento?

Matilde Fieschi D.R.

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Há ainda espaço para ouvir alguns poemas de Paula Tavares, para conhecer as músicas que a acompanham e descobrir o que a idade lhe tem ensinado. Que sonhos ainda tem por cumprir e a que livros e poemas regressa sempre?

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Como sabem, o genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de Matilde Fieschi. E a sonoplastia deste podcast é de João Ribeiro.

Até para a semana e boas escutas!

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