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O grande debate

O grande debate

O depoimento de Claudine Gay, presidente de Harvard, no congresso levou, conjuntamente com posteriores acusações de plágio, à sua demissão. Na essência recusou-se (tal como os presidentes das universidades de Pensilvânia e MIT quando interrogados) a proibir manifestações de estudantes de Harvard que defendiam a intifada e o genocídio dos judeus.
Segundo a congressista Stefanik isso constitui discurso de ódio e harassment e devia consequentemente ser proibido.
Deixando de lado a questão de se este tipo de discurso é ou não compatível com o código de conduta de Harvard, o cerne é se este tipo de discurso (de ódio), seja contra judeus, negros, brancos, árabes, ou o que for, deve ser permitido.
A questão (que tem levantado longas discussões entre professores de Harvard, de outras universidades e fundações) tem como resposta uma única palavra: sim. Deve ser permitido.
É odioso? É. É desprezível? É. Deve ser permitido? Deve.
A razão é a mesma pela qual o pior dos criminosos (p.e. um serial killer confesso) deve ter um advogado de defesa. Não é por ele. É pelas implicações. Pelo que se segue. Dado o precedente que se abriu. A caixa de pandora.
Este não merece ser defendido. Muito bem. Depois… aquele (na minha opinião) também não. E aquele outro tão pouco. Terminando em que uns (seres superiores ao comum dos mortais) determinam quem merece e não merece defesa. Bonito… basta ver o carácter de muitos dos comentadores de televisão para se concluir no que estamos metidos.
Com o discurso (de ódio) passa-se o mesmo. Proibido apelar ao genocídio. Muito bem. E quem se manifesta contra a imigração sem controlo (open borders)? Também (porque pode igualmente ser visto como ódio aos emigrantes). E quem protesta contra as quotas especiais para minorias? O mesmo (no fundo, dirão alguns, está o ódio aos negros). E manifestações contra leis forçando a paridade de mulheres em cargos? Igualmente (leitor, se vir bem é misoginia…). E contra os direitos dos transexuais e LGBT? Obviamente.
Continuando… manifestação a favor do aborto? De proibir. Porque é ódio em relação aos que vão nascer. E uma manifestação a defender a invasão de Gaza por Israel (morte ao Hamas) que já causou dezenas de milhares de mortos, não deve ser proibida? Não envolve violência? Claro que sim. Logo? Proibição.
Donde: onde é que isto pára? Pura e simplesmente no cancelamento da liberdade de expressão. Pouco a pouco, é-nos imposto o que podemos e não podemos dizer. A censura. O lápis vermelho. Na mão dos Herrenvolk, raça superior (termo nazi).
Disparate, dirão alguns: o discurso de ódio pode facilmente ser identificado e limitado. Basta ver se inclui palavras como genocídio, morte e que tais.
A sério? Então e se o discurso em vez de morte aos judeus for judeus ao mar? Ou Palestina do Jordão ao mediterrâneo? Ou expulsar os judeus do próximo oriente? Ou a Palestina para os árabes (para onde vão os judeus)? Ou abaixo os judeus? Ou…
É óbvio que tentar identificar discurso de ódio por palavras é uma tarefa inútil porque o sentimento está no conteúdo e não na forma. Palavras são como chapéus segundo Vasco Santana: há muitos e consequentemente é sempre possível evitar determinadas palavras mantendo o discurso de ódio.
Esta é a primeira razão pela qual o discurso de ódio não deve ser proibido. Se se começar não se sabe onde pára. Ou melhor, sabemos: na censura. Na “cancel society” que vários comparam ao McCarthyism da década de cinquenta.
Mas e se tivermos um grupo de sábios para avaliar?
Então temos entre nós Untermenschen e Herrenvolk. Inferiores e superiores. Pelo que: que é feito da igualdade?
Sem Herrenvolk, raça superior, é impossível determinar com precisão o que é e não é discurso de ódio.
Por exemplo, defender a imigração incontrolada nos EUA pode ser visto por alguns como replacement theory: a substituição populacional branca para benefício de determinados partidos.
Donde alguns defendem que no fundo é ódio aos brancos. E como discurso de ódio, qualquer manifestação a favor da imigração deve consequentemente para alguns ser proibida.
Não? Estamos novamente caídos na master race: a opinião de uns vale mais que a de outros.
Ou seja, proibir dizer mate-se, eu odeio, abre a porta pouco a pouco ao fim da liberdade de expressão ou ao fim da igualdade. Duas qualidades que qualquer democracia deve ter no seu cerne.
Mas… e se “eles” passam das palavras aos actos? Ah! Aqui a história é outra.
Gritar: Palestina do Jordão ao mediterrâneo? Tudo bem. Dizer vamos ao dormitório X da universidade Y, incendiar o edifício e matar judeus, tudo mal.
Uma coisa é exprimir pensamentos. Outra induzir acções. E isto acontece quando a fala adquire duas características adicionais. Primeiro, passa a conduta, seja efectiva ou potencial em determinado local e tempo: bullying, ameaça, intimidação (harassment) e agressão. E segundo, determinado grupo ou indivíduos são especificamente alvo.
E é a determinação do tempo e local que é a linha vermelha separando o livre pensamento da violência (potencial ou efectiva). Uma linha fina? Verdade. Mas crucial. Mais uma vez são os pequenos detalhes que fazem a grande diferença.
Por muito odioso que seja o que determinadas pessoas dizem, não há outra opção que deixá-los falar.
E assim o problema é que se determinado ponto de vista, por repelente que seja não puder ser exprimido, atravessou-se a linha para a censura de ideias (David Cole).
E sendo secundárias outras vantagens de deixar falar: 1) desabafam, 2) os cheios de ódio são identificáveis e 3) a impraticabilidade de evitar que uma manifestação convocada sob o tema defesa dos direitos dos brancos a dada altura tenha slogans como morte aos negros (o que faz a polícia? carrega?).
O essencial é que a consequência de proibir o discurso de ódio é abrir a porta ao fim da liberdade. É por isso que A. Dershowitz, ex-professor de Harvard, sendo judeu defendeu em tribunal o direito dos neonazis a manifestarem-se.
E o facto de frequentemente pessoas inteligentes defenderem o contrário, não é porque não percebem. É que são motivados, não pelo intelecto, mas pela emoção, pela sua intolerância a opiniões diferentes das suas.
Pelo que sob o pretexto de proibir o ódio querem impor a ditadura da sua vontade. Podem dizer o que quiserem desde que… eu concorde. E votarem em que partido for… excepto quando não gosto.
Nas palavras atribuídas a Voltaire: não concordo com uma só palavra tua; mas defenderei até à morte o teu direito a dizê-las. Ou de Elon Musk: a liberdade de expressão não tem significado a não ser que aceitemos que pessoas de que não gostamos digam coisas com que não concordamos. O Twitter? Agora chama-se X.
P.S.: De acordo com a fundação para direitos individuais e de expressão nos EUA, entre 2014 e 2023 houve mil tentativas de cancelar professores universitários e 200 foram efectivamente despedidos. Um em cada seis professores foram investigados ou ameaçados de. O número para alunos é 1/10. E 90% dos professores admitem praticar autocensura.

Jorge A. Vasconcellos e Sá
Senior Research Fellow at Peter F. Drucker and
Masatoshi-Ito Graduate School of Management
Professor at ISG Business School
E-mail: associates@vasconcellosesa.com
Website: www.vasconcellosesa.com
LinkedIn: http://www.linkedin.com/in/vasconcellosesa
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