expresso.ptRui Lage - 4 abr. 14:00

O Chega corteja os inimigos da Europa

O Chega corteja os inimigos da Europa

Conceber a política europeia como uma política setorial enferma de miopia. Realojar os assuntos europeus no Ministério dos Negócios Estrangeiros, como fez agora o novo Governo, é um erro, porque volta a diluir aquilo que são hoje assuntos internos – os assuntos europeus – numa moldura que serve a todo o mundo e ninguém

Enquanto a Europa acorda, ramelosa e estremunhada, do seu idílio de quase 80 anos, procurando a compostura adequada ao seu estado de “pré-guerra”, Portugal deu-se ao luxo de uma campanha eleitoral no mais serôdio alheamento dos assuntos europeus. Meio século volvido sobre a Revolução de 74, o nosso recobro de décadas de isolacionismo prossegue. A geografia não ajuda. Em 1968, um historiador estrangeiro descrevia Portugal como um "Tibete minúsculo". Mas até o remoto Tibete foi anexado à força das armas, pela China.

Na girândola de debates e diretos televisivos, André Ventura tem sido generosamente poupado a perguntas sobre os seus conluios europeus e internacionais. Agora solicitam-no para comentar o hipotético regresso do serviço militar obrigatório, como se nada o ligasse à clique de fãs do homem que trouxe a guerra às portas da Europa e nos coagiu a tal debate: Vladimir Putin. Em Março, Ventura reuniu em Roma com a sua extremosa família política europeia para, mais uma vez, vergastar os imigrantes – os mais fracos entre os fracos. Dali não saiu repúdio pelo nacionalismo agressor do autocrata russo, o velho mentor – e nalguns casos financiador – da trupe. Um dos compinchas de Ventura, o vice-primeiro-ministro italiano, Matteo Salvini, preferiu atacar Emmanuel Macron, acusando o presidente francês de ser “um perigo para a Europa” por ter levantado a hipótese do envio de tropas para a Ucrânia. Nunca lhe ouvimos dizer o mesmo de Putin, cujo rosto o governante italiano ostentava ufanamente numa t-shirt, talvez enfeitiçado com a virilidade belígera do ex-KGB. Sobre a “eleição” presidencial falsificada pelo autocrata russo, no mês passado, Salvini não se conteve: “a escolha do povo é sempre a escolha certa”.

Diversos eurodeputados do grupo Identidade e Democracia, a que pertencem o Chega, a Lega de Salvini, o partido de Le Pen, a AfD e o belga Vlaams Belang, estão atualmente sob investigação por suspeita de propagarem desinformação preparada pelo Kremlin a troco de dinheiro. É o mesmo grupo onde, hoje em dia, o Partido Comunista Chinês recruta lobistas, como o deputado Filip Dewinter, dirigente do Vlaams Belang, ou Maximilian Krah, o cabeça-de-lista da AfD às europeias, indivíduos com os quais Ventura comunga ideias, fotografias e até jantares à porta fechada, em Lisboa (a 23-11-2023).

Bem pode o Chega falar em apoio à Ucrânia quando, nas costas dos portugueses, ou longe da sua vista, anda aos abraços e às selfies com os cúmplices de Putin e de Xi Jinping. O oportunismo é o único mandamento deste partido e é por isso que o diplomata Tânger Corrêa, o anunciado cabeça de lista às eleições europeias, deu sumiço às suas declarações pró-russas nas redes sociais, as quais implicitamente caucionam a narrativa de Putin, desde a postura “provocatória” de Kiev à tese da “nazificação”.

A comunicação social presta-se a lavar as mãos do Chega, abstendo-se de questioná-lo sobre a sua fraternidade com os acólitos de Putin e o seu embevecimento com os inimigos da Europa, como Donald Trump, que esse partido quis trazer a Portugal, há pouco mais de um ano.

Falar de fronteiras, nos termos em que o faz a família de Ventura, é risível na ausência de um poder militar capaz de defendê-las de ambições imperialistas. Se há coisa que o nacionalismo nos ensina é que as fronteiras nacionais são demarcações precárias. A Europa das nações que Ventura e os seus comparsas alardeiam não passa de um castelo de cartas se não houver quem a socorra militarmente. Até às eleições americanas, daqui a uns meses, o protetor chama-se Joe Biden. Mas não é ao atual presidente dos EUA que o clube de Ventura tece loas. Essas vão para o seu putativo sucessor, o qual, fascinado com o déspota do Kremlin, se comporta como o cabecilha de um negócio manhoso de segurança: Putin pode invadir as nações que não pagam o suficiente à NATO, diz ele.

A soberania que importa hoje, face ao agressor russo, não é a soberania solitária e impotente do Estado-nação, mas a soberania europeia: uma soberania colaborativa na constituição de uma indústria de defesa e de uma força militar conjuntas, tenha esta o nome de “exército europeu” ou outro qualquer.

Em 2022, a opção orgânica do XXIII Governo Constitucional de autonomizar os assuntos europeus numa secretaria de estado, diretamente dependente do primeiro-ministro, deu finalmente tradução a uma realidade que nos entrava pelos olhos dentro: a diplomacia tradicional e a governação europeia são esferas de atuação política de natureza e consequências incomparáveis. . A menos que um ministério comandado por um perito em política europeia e um assumido federalista, como é Paulo Rangel, acabe por subalternizar os assuntos verdadeiramente externos... Seria importante conhecer o pensamento do novo Primeiro-ministro sobre esta matéria.

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